Tuesday, September 27, 2011

Amoras e Abelhas



Dedicado a ti, com uma saudade imensa.

Abriu a velha persiana e afastou as cortinas poeirentas para deixar verter luz da manhã na pequena divisão, protegendo a boca e o nariz do pó que se levantara com a mão em concha sobre a face. Voltou-se para a contemplar - a sala de jantar (apenas assim chamada por conter um pequeno conjunto de mesa e cadeiras de jantar, apesar de ser demasiado pequena para merecer o nome), encontrava-se repleta de vultos brancos, onde a mobília se escondia debaixo dos lençóis coçados. Prendeu o cabelo e atou um lenço à cabeça. Um a um, foi destapando os móveis e, ao mesmo tempo, as memórias da sua infância.

Parecia que ainda conseguia ouvir os passos da avó na cozinha, o som que a despertava todas as manhãs. O distante crepitar do lume, aceso de madrugada na lareira de pedra, embalava a sua sonolência matinal e ela aninhava-se ainda mais debaixo dos lençóis. Quando o cheiro do café acabado de fazer se espalhava pelo quarto, abandonava o fofo monte de cobertores, ainda quente, e seguia descalça, camisa de dormir de flanela e a única boneca que possuía pendurada por um braço, até à sala de jantar. Deliciava-se com o cheiro a madeira de castanheiro envernizada, com a visão das arcas maciças cheias de toalhas e lençóis de linho, semeadas de bolas de naftalina. Em cima de uma delas, uma imagem de Jesus Cristo, mão erguida em sinal de bênção, expressão benevolente e chagas sangrantes, ostentava uma túnica imaculada e um halo dourado na cabeça. Imponente, a cantareira exibia os pratos brancos decorados com flores castanhas e cenas bucólicas. Na mesa, rodeada pelas seis cadeiras de costas, a toalha de renda estendia-se até ao chão, e sobre ela repousava a terrina de porcelana de Limoges, toda ela azul e ouro, que o Avô trouxera há muito de França, de presente para a Avó.

Escondia-se debaixo da mesa sem fazer barulho, oculta pela toalha imaculada, e, abraçando a boneca, esperava. Não tardava muito até que o ouvisse – o Avô saía do quarto de calças, suspensórios sobre a camisola interior e uma toalha de rosto ao ombro. E então o ritual – ao encaminhar-se para a porta, detinha-se por um momento. Hesitava, voltava-se para sair, mas logo girava sobre os calcanhares e caminhava vagarosamente até à mesa. Levantava a toalha com a ponta dos dedos e com ar trocista dizia: “Ora, ora!”. Ela rastejava de debaixo da mesa e erguia os braços. O Avô pegava nela ao colo com um sorriso, dava-lhe um ruidoso beijo na face e levava-a com ele até à casa de banho, onde a instalava em cima do tampo de mármore do móvel branco. Adorava vê-lo fazer a barba - o cheiro do sabonete, o cantarolar baixinho enquanto o espalhava com o pincel pela face, a minúcia que investia no escanhoado. Não tardava e a Avó logo chamava, reclamando das cantorias que atrasavam o pequeno-almoço e arrefeciam o café. Sorriam baixinho, cúmplices na traquinice, e o Avô apressava-se então a lavar a cara com a água fria que corria nos canos gelados. Limpava-se num gesto rápido à toalha que trazia ao ombro e acomodava-a às suas cavalitas até à mesa, onde o pão feito pela avó já estava cortado e o queijo partido.

Era feliz na sua meninice. Gostava de acompanhar o Avô ao pinhal da família tratar das colmeias. O Avô era-lhes devotado, sussurrando-lhes palavras que a ela pareciam feitiços, pois nunca o picavam. “É preciso tratá-las com amor.”, dizia. Abria a colmeia e tirava o favo, partindo um pedaço pequeno, que lhe entregava, e do qual ia sugando o mel, puro e doce, enquanto percorriam os caminhos de terra batida que se insinuavam por entre as árvores até ao riacho que gorgolejava ao fundo das colinas.

No Verão, apanhavam amoras que brotavam, grandes e negras, das silvas que cresciam na beira dos caminhos; apanhavam tantas que ela tinha que carregá-las numa dobra do vestido. E quando por vezes se abatiam sobre eles as trovoadas da estação, chegavam a casa encharcados e a Avó barafustava – da menina, que vinha molhada até aos ossos e das manchas violáceas que as amoras imprimiam no vestido, que eram horríveis de tirar. Acomodava-os à lareira, envoltos em toalhas e ordenava-lhes que não saíssem dali até estarem secos, Deus os livrasse de apanharem uma pneumonia. E quando ela se virava de costas, o Avô sorria, travesso, e piscava-lhe o olho.

No Natal, ia com o Avô ao pinhal, que a deixava escolher o pinheiro que ela achasse ser o mais bonito para levar para casa, para o enfeitar com os doces da Avó. Enquanto o Avô cortava o pinheiro, ela apanhava pedaços de musgo e pedras, que colocava num cesto de vime, para fazer o presépio debaixo da árvore.

Aos serões, o Avô sentava-se com os pés à lareira, e fumava o cachimbo. A Avó tricotava camisolas para ela ou fazia crochet e contava-lhe histórias – a história da Pastora, que esperava inutilmente o regresso do apaixonado Zé Maria, que fora combater em França e por lá morrera; a história do Conde, a quem o Rei mandara assassinar a Condessa para que se casasse com a filha, Dona Silvana; a história da cesteira Deolinda, da mãe do menino cego, do moleiro velho e tantas outras…
Quando a história acabava, esgueirava-se para o colo do Avô e, meio “mole” do calor das brasas, brincava com o seu muito estimado relógio de bolso, um Ómega. Apenas o virava e revirava entre os dedos, acariciando a tampa trabalhada, abrindo-a de vez em quando para contemplar os números elegantes e os finos ponteiros de metal. Quando o Avô estendia a mão e pegava no relógio para anunciar que era tarde, fingia-se adormecida (pouco faltava, de qualquer modo), para que ele a levasse ao colo para a cama e a fosse aconchegar. O Avô sabia que ela fingia, e ela sabia que ele sabia, mas nenhum dos dois se descaía.

Custou-lhe abandonar o lar e a aldeia para ir para a faculdade, para tão longe. No momento da partida, o Avô acariciou-lhe a face com as suas mãos queimadas pelo sol e disse, a voz embargada: “Só tenho medo que não sejas feliz…”. Mas fora. Fizera amigos com facilidade e ingressara num curso que a apaixonava. Ia a casa sempre que podia e comemoravam os três as suas pequenas e grandes vitórias na cidade grande.

A morte do Avô veio no terceiro ano de faculdade, no dia do seu aniversário. O mundo desabou - nunca antes experimentara perda; aquando da morte dos pais era demasiado pequena para se lembrar do que quer que fosse. Chorara lágrimas que não sabia que tinha e fora invadida por uma dor que não concebera existir. Começou a compreender todos os contornos da palavra saudade, nos meses, nos anos que se seguiram. Em todos os momentos. Quando olhava para uma fotografia. Quando sentia inesperadamente o cheiro a cachimbo. Quando comia amoras. No Natal. No Verão. Porque sim. Quando acabou o curso. Quando começou a trabalhar. Ao longo de todo esse tempo foi percebendo que a ausência não apaga o amor de uma vida e mesmo quando casou, e percorreu a nave até ao altar sozinha, nunca se sentiu só…

Uma comoção lá fora despertou-a do seu devaneio – os pintores estavam a montar os andaimes ao longo da fachada da casa. O sol derramava agora luz a jorros para dentro da sala.
Uma pequena figura, de caracóis loiros, vestida com um pijama da “Hello Kitty” surgiu à porta da sala, ensonada e esfregando os olhos.
- “Mamã… é aqui que vamos viver agora?”
Ela descalçou as luvas de borracha, pousou o esfregão junto do balde e do decapante e ajoelhou-se junto dela.
- “Sim, querida.” – respondeu, afagando-lhe os cabelos e olhando em volta – “Esta é a nossa casa.”

Tuesday, August 30, 2011

Redenção


Saiu sem prestar atenção à porta do prédio, que ficou escancarada. Tinha só uma das mangas do casaco vestidas e contorcia-se para vestir a outra enquanto tentava correr – uma combinação com pouco sucesso. Corria sem parar, o mais depressa que conseguia, sem nunca lhe parecer suficiente. Evitava por um triz velhinhas com cães minúsculos à trela, esgueirava-se por entre bandos de pessoas de óculos escuros, fato e pasta, e esquivava-se de crianças irrequietas com uma destreza que mais se atribuiria à sorte do que à agilidade. O sol morno de Outono, que lançava reflexos fracos no seu cabelo fulvo, escondia-se de vez em quando por trás de uma fina cortina de nuvens cinzentas. Isso sabia-lhe a mau augúrio e fazia-o exigir mais das suas pernas. Doíam-lhe, mas não podia dar-se ao luxo de parar. Estava a correr contra o relógio – agora que chegara a uma conclusão, corria o risco de ter sido tarde demais. Era o desespero que o impelia.
Por dentro, recriminava-se por ter levado tanto tempo a tomar esta decisão; no fundo, alguma vez poderia ter decidido de outro modo? Sequer quereria? A resposta era não, e ele sempre o soubera, mas o orgulho impedira-o de o reconhecer para si próprio… Um pouco como o sol que ele não via, apesar de saber que estava lá.

Chegou ao metro – galgou as escadas, três degraus de cada vez e esgueirou-se no último momento pelas portas da carruagem, que se fechavam já sob um aviso estridente. Ofegante, olhou a plataforma que agora ficava para trás à medida que o metro ganhava velocidade. Consultou o relógio de pulso e os olhos azuis encheram-se-lhe de angústia.

-

Sentara-se na sala de espera do aeroporto com a bagagem de mão a seu lado. Sobre os joelhos, a revista que comprara jazia aberta, mas ela não a lia: levantava os olhos, instante a instante, em busca de um rosto que não surgia por entre os das pessoas que por ali deambulavam. De todas as vezes voltava a dirigir o olhar para a pretensa leitura, abanando a cabeça como que a condenar a sua ingenuidade. Ah, mas a expectativa não tardava a aguçar-lhe a curiosidade - os seus olhos retomavam a procura e a revista permanecia inerte na página em que fora aberta. Interiormente, recriminava-se por não conseguir extinguir a réstia de esperança que se barricara no seu âmago. Desejava bani-la, para que não pudesse sentir desilusão ou tristeza. Alguma vez acreditara que seria capaz? Sequer o desejaria francamente? A resposta era não e por isso mesmo há muito desistira de fingir-se verdadeiramente interessada no artigo sobre hidratantes faciais.

O tempo passava. Fizera o check-in há mais de uma hora, mas agora os vários relógios bem ao alcance dos seus olhos relembravam-lhe que pouco tempo faltava para a porta de embarque fechar. Com um gesto derrotado, fechou a revista e vencendo o impulso de olhar para trás, dirigiu-se para o controlo de bagagem de mão, onde inúmeras pessoas começavam a juntar-se.

-

As pernas pareciam-lhe dormentes enquanto corria pelo aeroporto, como se já não respondessem ao seu comando. Deteve-se, as sapatilhas derrapando no chão de mármore claro, para consultar o placard intitulado “Partidas”, em busca de algum alento. Não tinha muito tempo. Largou de novo em corrida, assolado pela questão que punha em causa o sucesso da sua demanda: “A porta de embarque está quase a fechar…E se ela já tiver passado pelo controlo de bagagem de mão?” Era, mais do que possível, provável, mas não queria pensar nisso. Galgou umas escadas rolantes e as várias entradas para o controlo de bagagem de mão surgiram à sua frente. O chão fugiu-lhe debaixo dos pés - estavam apinhadas de gente. Em desespero, começou a percorrer as faces uma a uma, fila a fila, numa busca condenada por todas as probabilidades.

Tinha já perscrutado a quarta fila, quando a viu a alguns metros de distância, numa fila com pouca gente: o cabelo comprido solto sobre os ombros e a écharpe cor de coral que ele lhe oferecera ao pescoço. Quis chamá-la, mas a alegria repentina que sentia prendeu-lhe as palavras na garganta. Viu-a estender o bilhete ao funcionário para verificação. Tossindo, recuperou o fôlego e libertou a voz. Cabeças várias se viraram na sua direcção, mas pouco lhe interessava. Ela fitava-o, de bilhete ainda na mão, uma expressão incrédula estampada no rosto rosado de emoção. Abandonou a fila e dirigiu-se a ele, primeiro num passo lento, depois correndo. Quis ir ao encontro dela, mas as pernas não lhe obedeciam, como se a corrida o tivesse drenado de todas as forças. Recebeu-a nos seus braços, envolvendo-a com força e disse-lhe ao ouvido: “Desculpa…” E ela, com os olhos a transbordar de água, sorriu e abraçou-o com mais força.
“Menina…” – era o funcionário do controlo. Desprendendo-se do enlace, ela assentiu com a cabeça, e voltou-se para o fitar.
“Tenho de ir…”
“Vai. Conversamos quando voltares.”, respondeu. Ela fez menção de pegar na mala, mas ele deteve-a subitamente, puxando-a ao de leve pela mão que ainda segurava na sua, assolado por uma dúvida repentina. Voltou-a de novo para si.
“…Tu vais voltar, não vais?”
Ela sorriu-lhe aquele sorriso que o desarmava, estendeu os braços em volta do seu pescoço e, juntando a sua testa à dele, disse-lhe: “Claro que vou.”
Já não tinham mais tempo. Soprou-lhe um beijo do outro lado do controlo de bagagem e afastou-se, sempre a olhar para ele, a acenar.

-

Acordou sobressaltado, encharcado em suores. Tremia ao de leve, sentado na cama. A náusea assolou-o de súbito, ao recordar o sonho que tivera. Levantou-se e foi encostar a cara ao vidro frio da janela. O coração doía-lhe, batendo desenfreado contra as grades da sua gaiola. Tentou concentrar-se no cenário que se estendia do outro lado do vidro para reprimir o vómito – a rua, mal iluminada pelas luzes ambáricas que bruxuleavam de quando a quando, estava deserta e o vento gélido de Dezembro vergava os ramos nus das árvores. Ao longe, ouviu um trovão. Afastou a cara da janela. Passou as mãos pela cara, pela barba por fazer, pelos olhos, comprimindo-os na tentativa de apagar o que vira. Depois, mecanicamente, dirigiu-se à secretária e acendeu o candeeiro. Ficou assim, de pé, olhando os jornais que se amontoavam desde há alguns meses e cujos cabeçalhos gritavam silenciosamente a antítese dos seus sonhos.

“Avião cai sobre a Alemanha – causas ainda por apurar”

“Acidente de avião faz 228 mortos”

“Acidente aéreo no Sul da Alemanha não deixou nenhum sobrevivente”


Sentiu o coração sucumbir, como de tantas outras vezes, sob o peso daquelas frases, e ir encostar-se, encolhido, a um canto da sua gaiola. Se ao menos…
Todas as noites revivia a decisão que tomara e a que devia ter tomado. Todas as noites punha o orgulho de lado, fazia o que estava certo, o que ela esperava dele, e ia ao aeroporto. A ideia dela, sozinha na sala de espera, procurando por ele até ao último minuto até se aperceber que ele não iria aparecer…torturava ainda mais o coração encolhido, que aceitava resignado, contrito, a culpa que lhe atribuíam.
Apoiou ambas as mãos na secretária e, exalando, deixou cair a cabeça em rendição.
“Se ao menos…”

Monday, May 02, 2011

Da consequência dos arrependimentos - Parte 2


“Te amo como se aman ciertas cosas oscuras,
secretamente, entre la sombra y el alma.”

Pablo Neruda

Estou atrasada - não ouvi o despertador e, como se não bastasse, agora perdi o comboio. Começamos bem o dia! Na plataforma, vou consultando o relógio de 5 em 5 segundos e espreitando a linha em bicos de pés na impaciência de ver a primeira carruagem surgir. A manhã vem soalheira – a luz dourada dança nas superfícies espelhadas e faz-me semicerrar os olhos. A brisa agreste vem povoada de sementes de dente-de-leão, nevão primaveril que vai deixando alguns flocos presos no meu cabelo. Consulto o relógio mais uma vez e bato o pé de impaciência. Odeio chegar atrasada.

Por fim, ei-lo. Gosto de ser envolvida pelo momento de vácuo que emudece o mundo precisamente na altura em que o som do comboio a aproximar-se se torna ensurdecedor. Dura apenas um milissegundo… e depois a explosão de som que se segue atira-me para trás o cabelo dourado e sacode dele as sementes de dente-de-leão que eu não tinha conseguido tirar. Quem dera que esse momento de quietude durasse, e eu pudesse ficar só um pouco mais entre o sonho e a realidade. Mas o mundo não pára assim tão facilmente.

A minha impaciência alonga a viagem de comboio mais do que seria necessário. A viagem de metro não é mais suportável, mas eu sou mesmo assim, auto-martirizadora. Enfim, chego ao Hospital. Consulto o relógio – são 8h53. Já não tenho tempo de vestir a bata, por isso apresso-me pelo corredor da enfermaria em direcção à Sala de Reuniões. Àquela hora já está cheia, por isso deixo-me ficar à entrada, de pé. A minha tutora cumprimenta-me com um breve aceno de cabeça, que eu retribuo. O relato da Urgência Interna continua, indiferente à minha interrupção:

- … pelo que foi transferida para a UCI onde se mantém em observação. De ocorrências, tivemos um óbito na cama 18…

Gaita. O meu pensamento descarrila e eu deixo de ouvir o resto. A D. Irene… Tento fazer o menos barulho possível ao sair. Chego aos cacifos em passo rápido, visto a bata e atiro o estetoscópio à volta do pescoço. Entro na enfermaria apressadamente, ainda a puxar o cabelo de dentro da bata, e detenho-me no quarto de que ia à procura - está vazio. A D. Maria deve ter ido à casa-de-banho e a D. Dulce teve alta ontem. Vou até à última cama, ao lado da janela. Enche-me um sentimento de impotência que me faz respirar fundo. Olho o número por cima da cabeceira, a cama vazia, a mesa de noite – e algo capta o meu olhar: esqueceram-se de alguma coisa dentro da gaveta. Vou ver – é uma bíblia. "Mas a D. Irene não conseguia lê-la", penso, "porque teria isto com ela?". Folheio-a distraidamente e alguma coisa cai de entre as páginas amarelecidas. Apanho a fotografia do chão - é antiga; o papel é grosso, rugoso entre os meus dedos, a borda é recortada às ondas, como antigamente, e o momento foi capturado em tons de sépia. Uma mulher jovem, lindíssima, de cabelo preto aos caracóis, sorri ao lado de um homem, também sorridente, no meio de um jardim de rosas. Ele tem um braço por cima dos ombros dela e ela tem uma mão sobre o peito dele. Viro a fotografia – no verso lê-se “Irene e António, 1938”. Na televisão, ligada num desses programas da manhã, ouve-se uma voz plena de mel e carícias: “Eu sei que vou te amar / Por toda a minha vida, eu vou te amar…”

Sou sobressaltada pela enfermeira, que entra no quarto com o dinamap. Levo a fotografia ao bolso num gesto rápido e irreflectido, volto a pôr a bíblia onde estava e saio do quarto, o coração a pulsar desenfreado na minha garganta, em direcção à nossa sala, ainda deserta. Tiro a fotografia do bolso e volto a olhar a face da jovem D. Irene e quase não acredito que seja a mesma mulher. Mas ela não era casada, penso. Nunca veio cá ninguém. Que seria feito deste António? Teria morrido? Ter-se-iam separado? Penso nela, deitada na sua cama, a olhar pela janela e na morte solitária que teve e sinto-me angustiada.

Subitamente, o som dos teus passos no corredor desperta-me deste devaneio. Quão patético é que eu reconheça os teus passos? Sinceramente? Quase não te conheço e tu não me conheces de todo. E apesar disso, sem lógica ou sentido, afectas-me a um ponto que não compreendo. Reconheço a tua voz sem te ver e reconheço a tua face à distância por entre a multidão. Antes de entrares em qualquer sala, arrepio-me. Quando me olhas, fazes-me estremecer; é quase como se me electrocutasses e então cada nervo meu se inflama, cada centímetro de pele irrompe em chamas e o meu cérebro derrete neste fogo que consome tudo à nossa volta por momentos, sem tu pareceres dar-te conta.

Guardo novamente a fotografia no bolso da bata, mesmo a tempo de entrares. A reunião deve ter acabado. Cumprimentas-me, sentas-te ao computador e abres diligentemente um dos teus processos. O resto da equipa não deve tardar, devem ter ido beber café. De repente, suspiras e dizes:

- Isto hoje está o caos… Acreditas que também morreu uma doente nossa, sem família, sem ninguém?

Levo a mão ao bolso e aperto a fotografia ao de leve entre os dedos; penso na D. Irene, no seu ar de felicidade ao lado daquele homem, no desfecho da história e em como não quero que o mesmo me aconteça apenas por não ter tentado. Levanto-me sem hesitações, vou até ti e encosto-me na borda da tua secretária. Estendo suavemente uma mão sobre a página que estavas a ler, num gesto impeditivo e, retribuindo sem medos ou inseguranças o olhar que levantaste para mim, digo-te:

- Vem. Vamos beber um café.

Thursday, April 14, 2011

Da consequência dos arrependimentos - Parte 1



Estou acordada desde as 05h56.

O relógio pendurado na parede do outro lado do quarto impede que me alheie da penosa parada que é o desfilar do tempo. Ainda há silêncio na enfermaria – ainda dormem. Ouço ressonar na cama ao lado - hoje, graças a Deus, dormiu e não andou a noite toda a gritar impropérios às enfermeiras. Eu já não durmo muito. São as dores – infectam-me o sono, corroem-no e eu desperto. Dói-me tudo. Doem-me as escaras que não me deixam ter posição, dói-me a garganta com este tubo estranho que me alimenta… dói-me a alma. De vazio, de metas inatingidas, da inércia que me encheu a prateleira de todos os sonhos que sonhei.

A minha cama é a 18. Não consigo ver o número por cima da minha cabeça, mas ouço-os. “Já mediste a tensão à 18?”. É esse o meu nome agora – sou a “18”. O meu nome deve estar escrito algures, suponho - num processo, com certeza - mas poucos o sabem ou usam e já não sobra quem o recorde. Já não há ninguém que se lembre e que lhes conte da mulher que fui, dos caracóis negros, dos lábios pintados de vermelho, do jardim de rosas brancas na casa da Foz. O meu refúgio. Todos os dias me lembro das lições de piano que dava na sala verde – as teclas, lisas e suaves sob os meus dedos, a música, o papel de parede esmeralda pálido e as portadas de madeira pintadas de branco abrindo-se no areal. Quem ocupará agora a minha casa? Quem se sentará na sala verde? Um casal com crianças, talvez? Ou talvez ninguém a queira, seja trancada e definhe, como eu. O que sucederá ao piano? Talvez seja vendido ao desbarato, ou talvez simplesmente seja deitado fora. O meu piano... A lembrança dá-me vontade de chorar. Tenho saudades de tocar. Consigo ver as minhas mãos, sobre o cobertor azul claro e branco: envelheceram; os dedos continuam longos, mas faltam-lhes a destreza de anos idos. Há quanto tempo não toco Schubert ou Brahms? Seria ainda sequer capaz? Também já não sobra quem o saiba.

Nunca casei. Não tive irmãos, nem filhos. Com o tempo, todos os que me diziam alguma coisa foram abalando, um a um. Agora estou só. Não tenho ninguém. Estou só… Deus, como dói. A única dor que se sobrepõe à da solidão é a amargura do arrependimento – de tanta coisa! Sobretudo, de ter lutado pouco. Devia ter lutado mais, acima de tudo pelo amor da minha vida. Mas deixei que me passasse ao lado. Devia ter lutado - mas um coração jovem despedaçado é frágil e fraco; não tem sabedoria ou resiliência. Agora, quando chega a hora das visitas, não me sentiria tão saudosista (como se pode ter saudades de algo que nunca se teve?). Quando chega essa hora, tento alhear-me do afecto que rodeia as mulheres à minha volta e da inveja que me assola. Fecho os olhos para não ver os maridos, os filhos, os netos. Mas deixar de ouvir é mais difícil. Há uma janela imediatamente do meu lado esquerdo – quando me deixam virada para esse lado é menos difícil abstrair-me dessa comoção: perco-me na cascata de telhados e cores que cai do castelo, derramando-se sobre a colina. Aprecio cada minuto quando estou nesta posição – deixo o meu coração ensopar-se nessas cores, percorro uma e outra vez com o olhar as fileiras de vidraças, as ruelas serpenteantes, as nuvens fofas de folhas verdes que se renovaram com a Primavera. Sei que, nessas alturas de contemplação, abro muito os olhos, como se tivesse medo de não conseguir abarcar tudo, de me esquecer do mais ínfimo pormenor. Tenho o olhar sedento de saudade de passear na rua, de ouvir os meus sapatos na calçada, de sentir o sol na cara – é uma melancolia que amarga a boca e me faz escorrer uma lágrima pela face.

Os médicos vêm de manhã. A minha médica é morena. Tem cabelo castanho-escuro, denso, um sorriso calmo e olhos negros; segura-me na mão e fala comigo todos os dias enquanto me ausculta e me vê as pernas, a barriga. Fala comigo apesar de eu não conseguir responder-lhe e de todos lhe dizerem que eu já não percebo o que me dizem. Ela não faz caso e eu fico-lhe grata por isso. No outro dia, veio um médico que nunca tinha visto antes – veio ver as minhas feridas. Jovem, garboso, cheio da certeza da sua beleza e inteligência, e cheio da arrogância de ter a vida inteira pela frente. Se soubesse como tudo passa, como tudo se esfuma… Mas quem costuma vir ver-me mais vezes é uma jovem de cabelo claro. É despachada e atenciosa, gosto dela. Está a acabar o curso. Está também perdida de amores pelo colega que vem ver a senhora da cama ao lado. Ele não sabe e ela acha que ninguém faz ideia. Oh, mas eu já vi desfilar muitas paixões ao longo dos anos e leio bem os olhos das pessoas. Se pudesse falar, seria para lhe dizer que não espere, que lho diga, que lute como eu não lutei. Que vale a pena, “tudo vale a pena, se a alma não é pequena.”

Mas ele lava as mãos, atira um alegre “Até logo, D. Maria!” e sai do quarto. Ela segue-o, como sempre, com o olhar. Quando ele dobra a porta e desaparece, ela suspira disfarçadamente, baixa os olhos por momentos e depois levanta-os para mim. “Vai atrás dele!” – apetece-me gritar – “Faz alguma coisa!" Mas não me sai nada; ela deve perceber desconforto em vez de incentivo na minha agitação, porque me aperta mão e brinda-me com um olhar supostamente compreensivo. Sorri. “Até amanhã, D. Irene…” – sussurra. E vai-se embora.

A noite cai devagar. Não me incomoda. Já não fico cá por muito tempo. Isso também não me incomoda. Deixei de ter uso, de qualquer modo – já não posso cuidar das rosas, nem dar lições de piano, nem tampouco lições de vida. Estou virada para a janela e vejo a primeira estrela da noite contra as grossas pinceladas de roxo e rosa do céu – quando era menina, rezava-lhe, mas hoje já não há desejo que me valha. Mas gostava que aquela miúda se atirasse de cabeça e lutasse. Concentro-me nesse desejo e fecho os olhos devagar. “Até amanhã, D. Irene…”.

Wednesday, February 23, 2011

É tarde. Ou cedo, conforme.


Madrugada.
Saiu do elevador para o hall mal iluminado e percorreu ausente, a mente dormente, o corredor de azulejos que já teriam sido brancos, algures há muito tempo. Rodou a chave na fechadura com um gesto habituado - o som pareceu ecoar mais alto, durante mais tempo. Suspirou.

Largou a mochila mal entrou, sem se dar ao trabalho de a mover de onde caíra. O capacete não – ao capacete tinha amor. Colocou-o religiosamente, juntamente com as chaves da mota, no móvel da entrada, onde não cabia mais nada: uma BTT de esguelha, o equipamento de mergulho, a guitarra, a máquina fotográfica e uma bola de futebol – tudo coisas que já não usava há mais tempo do que gostaria.

Na sala, caixotes de cartão amontoavam-se nos cantos. Estava exausto. Deixou-se cair de barriga para baixo no sofá, esticou o braço para o comando, não chegava lá, esticou-se mais, esticou os dedos, isto já conta como uma ida ao ginásio, finalmente conseguiu. Procurou um canal aparentemente inócuo e deixou a mente divagar. Como qualquer interno cuja vida se resuma ao Hospital, os seus pensamentos foram inevitavelmente parar ao Serviço – as análises para 2ª Feira, a nota de alta que tinha que adiantar e... Poor bastard, nem meio a dormir consegues pensar noutra coisa? É tarde. Ou cedo, conforme. Vê se dormes. Tarde…será tarde demais para lhe ligar? És mesmo um idiota, é de madrugada, ele ainda deve estar a dormir. Não lhe apetecia estar sozinho, já nem sequer estava muito habituado, devia ter ido antes para lá. E daí, não, não devia, ia acordá-lo de madrugada por razão nenhuma.

Tinham-se conhecido num café, numa tarde chuvosa. Dois dedos de conversa e café. Fora tudo quanto fora preciso. E muito mais tardes depois dessa. Tudo mudara - agora existiam planos, partilha, e qualquer coisa daquele género passeios-de-mãos-dadas-fazer-uma-serenata-passar-o-dia-inteiro-contigo-na-cama. E começara a viver verdadeiramente desde essa altura.

Não surpreendentemente, lembrava-se igualmente do dia em que morrera. Numa daquelas já raras visitas a casa dos pais, durante um daqueles intermináveis jantares onde a austeridade do pai dominava a mesa com um chicote de fel. As perguntas acres – e pior, as críticas e julgamentos imerecidos – com que o brindava eram uma constante. Tens que te fazer um homem a sério, casar; sim, porque afinal, a tua mãe quer netos. Parecera-lhe inútil continuar a evitar falar do assunto ou continuar a inventar desculpas - confirmar-lhe as suspeitas parecia estranhamente libertador. Disparara a palavra “namorado” no meio de outras tantas que perderam importância e das quais não se recordava. Ouvira o som de talheres a tinir. O pai ficara lívido, uma máscara de nojo e raiva. A mãe encolhera-se, a cara nas mãos, e começara a chorar em surdina. Dirigiu-lhe um olhar ferido - sempre soube que ela sempre soubera. O medo e submissão sempre tinham vencido a coragem para o apoiar – não ia mudar agora. Fingir desconhecimento era mais simples, evitava ter que lidar com o assunto, com o preconceito e as fúrias do marido. De tanto fingir acabou por se convencer de que era verdade, que não sabia de nada. Que importava agora? Pouco ou nada. Levantara-se sem um som, sem uma palavra. Se não mudas, escusas de voltar, estás morto para mim, dissera o pai. Gritara – hoje não se recordava de ouvir o que dissera, as memórias surgiam-lhe sem som, mas sabia que gritara. Atingira o pai com toda a mágoa de um filho mal amado e incompreendido, com toda a frustração de uma vida em busca de um gesto de aprovação, com a profecia da morte solitária e amarga que com certeza teria. Ele não sabia nada de amor. Nunca vira nada além dos curtos horizontes da sua mente tacanha. Não conhecia nada que não fossem as suas preciosas regras, os seus inamovíveis limites, os seus sagrados e inflexíveis valores morais com os quais escrutinava todos quantos o rodeavam. Não sabia nada de amor.

Saíra sem olhar e só parou quando chegou junto dele – ele era a sua casa agora. Nunca mais vira o pai. Não chorara quando a mãe lhe telefonara a contar, entre soluços, do AVC. Não fora ao funeral. Não precisava – não tinha nada por que chorar, nada para dizer; naquela noite arrumara todos os assuntos com aquele homem, que de pai só o fora de nome. Sem se aperceber, arrumara também os preconceitos para fora da sua vida, com a promessa de que ninguém mais o faria acreditar que o que o fazia tão feliz era errado, e mau, e blasfemo. E como era feliz agora...

A primeira luz da manhã anunciava-se ténue na janela. O som do telefone acordou-o com sobressalto do sono leve em que vagueava. Era ele.
“Já estás em casa? Os tipos das mudanças estão aí daqui a uma hora… Estás pronto?”
Olhou em volta – caixotes selados, prateleiras vazias, paredes nuas.
“Sim”, respondeu, “estou pronto.”

Wednesday, January 26, 2011

“What do I look like? The Wizard of Oz? You need a brain? You need a heart? Go ahead. Take mine. Take everything I have.”



O prato está em cima da mesa há horas. Arrefeceu.

A cozinha está mergulhada na penumbra, entrecortada apenas pelos fracos soluços da lâmpada. O frio viscoso que satura o ar rasteja, cola-se-me a cada cabelo, a cada centímetro de pele, como se se alimentasse da pele de galinha que me causa. Tudo me enoja neste ambiente: o chão de linóleo manchado, a mesa de pés ferrugentos, o frigorífico que geme uma agonia rotineira em surdina. E o ruído das patas de ratos sobre o linóleo, que deambulam experimentando as fronteiras do meu redor.

A minha alma está no prato. Agora está fria.
Sentada na velha cadeira, olho para aquela massa amorfa, enegrecida, e o pouco que se move reitera o meu nojo. Não teve sempre este aspecto: os golpes que lhe foram sendo desferidos ao longo do tempo - por outros, por mim! - despojaram-na de pureza e de inocência. Agora está infectada por rancor bolorento e castigo. Emana um cheiro fétido a mágoa e dor e arrependimento. É uma coisa enferma, moribunda, quase parece que respira com dificuldade – cicia e sibila e sussurra. Como todas as coisas enfermas, resiste e debate-se com a ideia e a hora de padecer, mas a sua súplica não me demove. Na verdade, não produz em mim qualquer emoção. Estou vazia. A minha alma está no prato.

Os ratos movem-se com pausas - testam a sua própria audácia e sobem para a mesa. A hesitação é facilmente vencida pela minha indiferença e acercam-se do prato, onde a coisa está cada vez mais inquieta e desassossegada. Eu fico a ver. A primeira dentada é a que vence as barreiras de propriedade. Depois, a cerimónia desvanece-se - apoderam-se dela como se fosse sua, sem acanhamento ou pudor, como se eu ali não estivesse. Comem-na crua e sangrante, rasgando pedaços com uma avidez crescente, imperturbáveis pelos silvos débeis que dela se ouvem. Tampouco a minha presença os incomoda – o meu desapego foi equivalente a oferecer-lhes o que era meu de mão beijada. …Como é que costuma dizer-se? “Dá-se-lhes um dedo, tomam-te logo o braço”?

A indignação interior compele-me a deixar a cadeira, lançando-me sobre a horda que se banqueteia: agarro-os com violência, eles mordem-me os dedos, as mãos, os braços. A dor não me refreia, atiro-os para longe da mesa e chega-me o som dos seus corpos sujos embatendo no chão, guinchos de protesto, patas afastando-se e de novo o silêncio.

Tenho a garganta seca de cedências a mais. A coisa arqueja e geme. Pego-lhe com mãos hesitantes – continua fria, o sangue pinga e um estertor percorre-a. “Não te preocupes... Não deixo que ninguém te tire mais nenhum bocado.”, sussurro. Lá fora a madrugada teima em tardar. Não há pista de luz no horizonte e não, não se aproxima uma epifania matutina. Abro a portinhola do meu peito e acomodo com cuidado o que resta da minha alma lá dentro. Não é grande coisa. Mas é minha.

Tuesday, April 13, 2010

Sabes que mais?... Vai-te lixar!

Vai, vai e foge para onde quer que disseste que ias, para esse sítio chamado longe-de-mim; deixa-me na paz provinciana do fim-de-tarde de Domingo do Bairro. Quero lá saber se estou a fazer uma cena e se toda a gente está a ver! Empurro-te, grito-te que te vás, bato-te com os punhos fechados e viro as costas. Caminho sem olhar para trás e contenho as lágrimas - vou aguentar, oh se vou, pelo menos até virar a esquina; nem sequer deixo que me vejas levar a mão à cara para limpar este rio de que és a nascente. Mais uns passos... Mais um...

Dobro a esquina e desato a correr. O meu lenço cai-me do pescoço e eu não paro para o apanhar. Não sinto as pernas, não sinto as mãos, não sinto o meu coração, NÃO SINTO NADA! Estou anestesiada pela bofetada da tua cobardia e desconsideração! Corro, corro pelas vielas emaranhadas, os meus sapatos ecoando sobre o chão empedrado, gasto e sujo, fintando os estendais pingantes de roupa branca, evitando as poças de água estagnada… Embato abruptamente no gradeamento antigo e ferrugento do miradouro e deixo-me estar assim, por momentos, semi-pendente no abismo da cidade. É tudo calmo e silencioso, visto cá de cima; tudo tão incomplexo e descomplicado. O tempo pára, enquanto estou assim, meia suspensa, mas eu sei que não é por muito tempo - o relógio vai arrancar não tarda e não vai desfazer nada do que foi ou do que é.

…Então recuo. O vento assobia-me nos ouvidos e traça gélidos caminhos na minha face; passo os dedos pelos malares, pelas bochechas, pelo queixo… tenho a cara molhada. Nem sequer me dei conta. Percorre-me um arrepio cruel, acre, corrosivo. Já não estou dormente, já sinto. Esfrego os braços. Não chega. Abraço-me, tentando que a constrição me contenha – ameaço esvair-me por entre os meus próprios dedos, feita líquido, feita água, feita lágrimas inglórias e sabor a fel. Já sinto. Odeio-te. Credo, como te odeio. E a mim. E a nós. Fazes-me mal. Vai, mas vai para longe.

Limpo a humidade da cara, e passo o lenço de papel de baixo dos olhos – tenho a maquilhagem esborratada. Puxo o cabelo para trás e respiro fundo. Está a fazer-se noite. Vou à Baixa: preciso de comprar um lenço.

Tuesday, March 02, 2010

Vive-se melhor a inventar a verdade

“Vive-se melhor a inventar a verdade todos os dias, dizem-me. Faz de conta que não morres. Faz lá.” - Inês Pedrosa

…faz lá. Faz-me a vontade, e faz de conta que não foste a lado nenhum. Teríamos ido a Londres por esta altura, ou ao Egipto? Ultimamente penso nisso todos os dias. Fomos adiando tanta coisa…sonhos que deixaram de ser, esperanças que já não são. Fomos adiando tudo porque íamos viver para sempre.

E depois veio aquele telefonema. O dia em que tudo começou a correr mal. O teu corpo atraiçoou-te e à criança que carregavas contigo. Nunca mais foste a mesma. Não chores, dizias. Se não chorares, eu não choro. Mas choraste. Choraste a vida que te tinham roubado, choraste o filho que partiu antes de nascer, choraste a perda de uma quimera. Ficaste mais calada. Sorrias menos. A gargalhada que contagiava toda a gente tornou-se uma raridade. A luta contra o monstro que trazias dentro esgotava-te, mas nunca te queixavas. Nem desistias. Raios te partam, eras teimosa que nem uma porta. Mas estavas a perder a guerra e agora que penso nisso, sinto que o sabias.

Porque não me disseste? Lembro-me da nossa conversa antes do fim-de-semana e de como parecias não estar a dizer tudo: no meio das coscuvilhices rotineiras, das novidades, dos updates, havia qualquer coisa mais que não conseguiste frasear. Em vez disso, perguntaste-me quando iria a Paris e disseste-me que odiavas a tatuagem que eu tinha acabado de fazer. Eu ri-me. Sempre foste do contra. Estava atrasada para o comboio e despedimo-nos à pressa. Prometi que te ligava no fim-de-semana. …Nunca cheguei a ligar.

Repito vezes sem conta “não era assim que as coisas deviam ter sido”. Cada dia é uma lembrança gritante de como não era assim que as coisas deviam ter sido. Saiu tudo ao contrário. Não sei o que odeio mais: a ti por partires e me deixares sozinha, a falta que me fazes ou não ter podido salvar-te. Porque não pude salvar-te? Eu quis, mas tu não esperaste por mim. É demasiado tarde, disseram. E eu chamei-te, e gritei, mas tu não respondeste. Já não eras. Como foi? Sentiste-te leve? Envolvida por uma tranquilidade branca e morna? O teu bebé estava à tua espera? Para onde foste? Responde lá, que mal pode fazer? Eu não digo a ninguém…

Não me deixaram ver-te. Odiei-os a todos – não perceberiam eles que tu eras minha também? Percebiam, diziam. Não me faria bem. Para o diabo com isso, com as convenções, com o que me faz bem! Eu precisava de ti, da tua mão na minha, dos teus conselhos, de te abraçar e implorar-te que voltasses… precisava de ti para ultrapassar a falta de ti, mas não te tinha! Tive que reaprender-me, perspectivar-me sem ti. Conceito da treta. Falta-me um bocado. Que se faz com isso?

Diz-me, onde está agora o teu Deus? Deixa-me falar-Lhe, quero que me responda a umas quantas coisas e quero dizer-Lhe umas quantas verdades. E inscrevê-lo num curso qualquer, daqueles que ensinam as pessoas a rever as suas escolhas e a recuperar o sentido lógico. Quero gritar-Lhe o que não posso gritar na rua, porque já passou muito tempo e parece mal. Não, na rua, com os outros, não posso gritar que me fazes falta e que dói. Mas com Ele posso e Ele deixa. E eu preciso.

Sei que me vês, à noite, quando me deito, quando fecho os olhos com muita força, e Lhe peço que te dê um passe, um visto, uma autorização qualquer - sei lá como é que isso funciona! - para me vires ver. Prometo que não digo a ninguém… Vá lá. Quando abro os olhos não vejo nada para além da silhueta desvanecida da mobília, da luz pálida e inerte a intrometer-se pelas frestas das portadas da janela. Fecho os olhos outra vez e murmuro: Vá lá, vá lá… só desta vez... E repito, uma vez e outra até adormecer. Não importa se não é hoje, ou amanhã. Não me preocupa o tempo que demore. Há-de haver uma vez. Sei que há-de haver uma vez em que vais estar lá.

Friday, January 29, 2010

Smile



"Smile
tho' your heart is aching,
Smile even though it's breaking
When there are clouds in the sky
You'll get by
If you smile through your fear and sorrow,
Smile and maybe tomorrow
You'll see the sun come shining through
For you.

Light up your face with gladness,
Hide ev'ry trace of sadness,
Altho' a tear may be ever so near,
That's the time you must keep on trying,
Smile, what's the use of crying?
You'll find that life is still worthwhile,
If you just smile..."


Charles Chaplin (1889-1977)

Tuesday, January 12, 2010

Se fores de manhã, não me acordes.


“Quero um amor tão doentio que o bom-senso o proíba.”
Autora anónima, terrivelmente talentosa


Se fores de manhã, não me acordes.

Nem sequer me toques. Não quero que o dia comece com a sensação dos teus dedos frios a percorrerem-me a face, anunciando-me que te vais. Nem quero que a visão de ti saindo seja o primeiro momento da manhã. Dispenso ficar rabugenta assim que começa o dia. Não, não me acordes.
Quero acordar quando já não estiveres, quando os lençóis já não retiverem nenhum do teu calor, pista nenhuma de que ali dormiste. Quero demorar-me no banho o tempo que me apetecer, não ter que me apressar para que também tu não chegues tarde. Quero levar o meu tempo a maquilhar-me, a escolher a roupa. Quero fazer café só para um e quero fazer as palavras cruzadas. Tu e essa tua mania de me roubares as palavras cruzadas! Também as fazes a caneta, e depois não as posso fazer eu!

Porque tens de ser tão parecido comigo? Vieste assim, sem eu dar conta, e agora fundiste-te em mim, não sei onde começo eu e acabas tu, não sei quando vivo para mim ou para ti, ou para os dois, abomino a palavra “nós”.
Já não te suporto. Detesto que o teu cheiro fique a pairar na minha pele, no meu cabelo, lembrança constante de que te pertenço. Detesto que me compreendas, como se tudo o que eu digo fizesse todo o sentido e restaurasse a ordem no caos. Detesto que sintas a minha falta e eu a tua. Detesto ver os teus óculos na mesa-de-cabeceira, como se pertencessem ali. Detesto que o gato se enrole nas tuas camisolas. Grandessíssimo traidor. Detesto que agora estejam sempre duas chávenas na mesa de pequeno-almoço, como se fosse lógico a unidade ser a junção de duas metades… Não é, garanto-te que não é!

Quero-te tanto que já não te quero, e quero tanto que fiques longe que não suporto a tua ausência. Não quero que me acordes de manhã, mas quero que voltes à noite. Quero que acabes com a ansiedade que se apodera de mim quando penso que hoje podes não vir. Quero que o gato ronrone ao reconhecer-te quando entrares por essa porta. Quero que largues tudo ao entrar e me abraces, como se não me visses há mil vidas, como se não houvesse amanhã, como se a manhã nunca fosse chegar. Quero sentir os meus dedos no teu cabelo, os teus lábios na minha pele, as minhas mãos no teu rosto, as tuas puxando-me de encontro a ti, e o mundo sermos tu e eu e depois acabar no precipício… Quero adormecer quente nos teus braços, com a chuva a tamborilar na vidraça, os teus dedos a brincar com os meus, o teu respirar no meu ouvido, no meu pescoço.


Quero que fiques.
Quero que a noite dure eternamente, esta escuridão bruxuleante que me ilumina a alma, este tempo parado que me alimenta a fome de ti, este estremecer que me abala até às profundezas de mim…
Nunca deixes de vir, porque eu vou estar à tua espera. O gato vai estar à tua espera.


…mas se fores, de manhã, não me acordes.

Monday, December 07, 2009


"And I know you're shining down on me from Heaven,
Like so many friends we've lost along the way,
And I know eventually we'll be together...

Sorry, I never told you, all I wanted to say."

Tuesday, December 01, 2009



“Minha alma procura-me mas eu ando a monte
Oxalá que ela nunca me encontre.”
Fernando Pessoa


Estou cansada.
Quero deixar tombar a cabeça e sentir o corpo inerte seguir-se-lhe, caindo no leito. Quero tirar partido de estar imóvel, tomando consciência de todo o centímetro de mim, dos ângulos estranhos que os membros formaram no meu desmoronar, da sensação do lençol na minha pele, das pestanas a roçar na almofada, do frio nas pontas dos dedos. Quero seguir com o olhar as partículas dançantes no feixe de luz que se intromete pela fresta da janela aberta, pequenos mundos e universos que rodopiam numa coreografia silenciosa e deslumbrante. Quero sentir o cheiro do incenso, das maçãs, do ar gélido da manhã.


Quero sentir-me e ter certeza que sou completa, que sou eu e mais ninguém. Que não tenho que ser o que esperam que eu seja, ou fazer o que é expectável que faça. Quero que me deixem arriscar, que não me tentem persuadir a jogar pelo seguro, a tomar esta saída da estrada em que sigo porque não se sabe quando aparecerá outra, e é melhor ter esta saída que não ter nenhuma. Quero seguir em frente enquanto me apetecer, escutar o coração e tomar o caminho que ele me disser para tomar. Quero ter a certeza que quando decidir tomá-lo será em prol de mim. Não quero ser metade; quero ser inteira. E percebo agora que para isso terei de fazer-me surda, terei que ser louca na minha medida, abafar as vozes que me perseguem e pressionam a ser racional e escutar o coração mais vezes.


Isso. É isso. Assim reúno forças que me permitem erguer, afastar o cabelo da cara, abeirar-me da janela e dizer, ao contemplar um dia agreste de Dezembro: “hoje vou ser feliz”.

Saturday, September 05, 2009

Saudade


Hoje sonhei contigo.

Era um fim-de-tarde cinzento de Outono. Talvez não muito distante. Entrei em casa a tempo de me abrigar da trovoada que rebentara e do vento que fustigava tudo lá fora. A casa, deserta e silenciosa, estava mergulhada na penumbra. Tirei o casaco. Fui ao escritório e larguei as chaves de casa em cima da secretária. Dirigi-me às escadas.

Foi então que ouvi. Uma tosse leve, lá em baixo, na sala… Parecias mesmo tu. Mas eu sabia que não podias lá estar… E, no entanto, desci imediatamente as escadas, para ir ver. Ao chegar ao fundo delas, deparei-me com a sala, totalmente envolta na escuridão.

Chamei: “Avô?”. E acendi a luz.

E ali estavas, no sofá do costume. Olhaste para mim, sorriste aquele teu sorriso reconfortante e disseste: “Pediste tantas vezes que te viesse ver, filha… Estou aqui.”. Corri para ti, entre lágrimas e gargalhadas, e abracei-te. Quis que prometesses que não partirias; disseste-me que tinhas muitas saudades, mas que só podias ficar comigo até adormecer. Quando eu despertasse já terias ido embora. Conversámos por horas, até que adormeci com a cabeça nos teus joelhos, enquanto me afagavas o cabelo.

E hoje acordei em paz.*
"Nunca se esqueça, nem um segundo
Que eu tenho o amor maior do mundo
Como é grande o meu amor por você..."

Tuesday, June 30, 2009

Drink it in.


"Did you say it?
I love you, I don't ever want to live without you, you changed my life.
Did you say it?
Make a plan. Set a goal. Work toward it. But every now and then, look around.
Drink it in. 'Cause... this is it. It might all be gone tomorrow."



Há sempre amanhã. Há sempre depois. Há sempre “daqui a pouco” e “até logo”.
…Não, não há.

Somos tão céleres em reconhecer que a vida é curta, em citar Horácio, em ceder os 5 minutos de choque da praxe ao saber da morte de alguém. E tão mais céleres ainda em não retirar qualquer tipo de sabedoria prática disso. Claro, falamos de aproveitar mais o tempo que nos é dado, de viver como se não houvesse amanhã, mas assim que o nosso pensamento se ocupa com outro tema…são apenas palavras atiradas ao vento. Talvez a perspectiva de perder tudo, todos, algo ou alguém que significa tanto para nós apenas tenha capacidade de produzir um sobressalto limitado. Talvez seja apenas um fenómeno bioquímico, fisiológico. Mas não deixa de ser incrivelmente estúpido.

Olha à tua volta. E se tudo o que vês não passasse de hoje?
Os teus sonhos e ambições? Os teus pertences? As tuas memórias, a tua saúde? As pessoas que amas? Mãe, Pai, irmãos, avós, tios, primos, amigos de infância, amigos de todos os dias, amigos para sempre, namorada, namorado ou marido, mulher? Tenta imaginar, por um momento só, que a tua vida, ou algum aspecto dela, acaba por ser totalmente diferente do que imaginaste. Que certas pessoas não te acompanharão para o resto da vida. Que não vais ser saudável para sempre. Que os momentos que idealizaste são arruinados. Que perdes o que levaste uma vida a construir.
Essa sensação de aperto, de frio no estômago? Chama-se “ter-noção-do-quão-efémero-e-inconstante-tudo-realmente-é”.

Temos tanto a perder… e nunca perdemos uma vez só. Ultrapassar uma provação, um momento difícil, não nos concede a graça de nunca mais termos que sofrer na vida. Não sofremos cada um o seu quinhão, por assim dizer. Estamos condenados a que algumas coisas más nos aconteçam, nem que seja pela natureza finita da vida humana; por vezes, até, essas coisas podem suceder-se mais rapidamente do que conseguiríamos prever… o mundo não espera até que sares das tuas feridas. Já pensaste nisso?

Não são palavras amargas, são palavras de quem também já perdeu um pouco de si, mas tem a humilde ambição de conseguir sorver todos os bons momentos de um dia, de lhes dar valor, e de dar graças pelas pequenas coisas. De dizer às pessoas que lhe são importantes o quão profunda e verdadeiramente as ama, o quão lhe é doloroso imaginar que não as vai ver amanhã, o quão grata está por tê-las na sua vida.
Ainda não consigo fazer isso tudo. Mas gostava de lá chegar. E gostava que todos quantos me são próximos lá chegassem também.

Fecha os olhos. Dá-me a mão. …vamos fazer um esforço?

Friday, September 14, 2007

Se é verdade que uma imagem vale mais que mil palavras, também é verdade que ainda não tinha usado esse "lugar-comum" neste blog. Só que andei a remexer em velhas fotos e encontrei esta relíquia... e esta foto convence-me desse cliché: hoje acredito que é possível que uma imagem tão pequena e já um pouco desbotada consiga concentrar todo o amor, dedicação e adoração de uns pais por uma filha... e pelo qual eu posso apenas estar grata.

Amo-vos muito*

Monday, August 20, 2007


E veio o dia. E eu fugi.

Fugi para longe, correndo até não poder mais, deixando tudo para trás, até perder de vista, e mesmo assim parecia nunca ser longe o suficiente. E não foi... E não foi...

Quando parecia ter a alma em sossego, mergulhada no verde dos prados e na imensidão azul do céu, alguém ateou fogo ao meu coração… Parecia que o sentia mirrar; senti como se me tivessem atraiçoado, como se um poder mais alto, com laivos de perfídia, tivesse estado a jogar xadrez com o que sentia, permitindo que me sentisse a salvo, apenas para que o golpe seguinte doesse mais…

O que é que faço agora? Como é que se reaprende a viver quando tiramos pessoas que amamos da equação? Não consigo deixar de pensar que é errado que algum dia me volte a sentir feliz… Como é que eu faço isso, quando perdi tanto em tão pouco tempo?

Não tenho respostas, nem resistência. Queria poder acordar de um simples pesadelo, mas não posso. Queria tê-los de volta, mas é impossível. Queria que alguém me ensinasse o que fazer com esta dor e revolta, mas tenho que aprender sozinha.

Não consigo exprimir bem o que me vai na alma; nem sei se quero, de tão negra que a sinto. Talvez, daqui a muito tempo, a mágoa drene. Talvez eu venha a poder dizer que já não sinto dor porque “eles não quereriam isso”. Por agora quero chorar. Quero levar-lhes as rosas de que tanto gostavam; sei que as não podem cheirar, mas quero levá-las mesmo assim. Quero que chova, que o céu os chore e, de caminho, talvez a chuva lave a raiva e tudo mais.

Friday, May 11, 2007

the sense of touch...


“It’s the sense of touch. (…) Nobody touches you. We're always behind this metal and glass. I think we miss that touch so much that we crash into each other just so we can feel something.”

Quanta verdade há nisto…

Quantas vezes nos encontramos rodeados de gente, só para descobrir que, no fim de contas, estamos sós? Quantas vezes os nossos gritos caem no vazio, de tanto que os que nos rodeiam são surdos ao nosso clamor? Quantas vezes a solidão e o pavor se apoderam de nós, quais tentáculos negros que surgem da escuridão – daquela escuridão que nos persegue sem cessar, à qual lançamos olhares por cima do ombro, na esperança de que se tenha desvanecido… - e ninguém se dá conta?

Ao andar pela rua, apercebemo-nos: as pessoas não se cumprimentam, não sorriem, não se tocam – na verdade, desviam-se umas das outras ainda a metros de distância. Quanto daríamos para que alguém nos sentisse, alguém nos visse, se desse conta? É por isso que dá tanta vontade de ir contra alguém no meio da rua… apenas para ter a certeza de que existimos de facto. É esse o valor do toque

Quantas vezes nos sentimos qual bote frágil ao largo da costa, cada vez mais longe da praia e do farol, cuja luz se perde no horizonte, extinguindo consigo a esperança que restava? Quantas vezes esse bote enfrenta as borrascas e as rochas, sem leme ou remos, e somos nós os únicos a bordo dele, quando parecia tão cheio noutras ocasiões?...

E às vezes dá vontade – tanta vontade - de ceder… Que o bote se estilhace enfim contra os rochedos, que enfim a água escura nos engula, trazendo uma quietude libertadora… Lá no cimo, os trovões rugem e os relâmpagos cintilam, mas não perturbam a paz gélida do mar…
E flutuo… Descendo levemente em direcção ao abismo. O meu olhar deixa o tumulto à superfície para encarar o negrume debaixo de mim… E já não importa que me engula, que me abarque e faça desaparecer, pois trará a calma… Em breve, nada importará, nada trará dor…

Mas vem um estertor, um espasmo…e o corpo nega-se a ceder. As pernas movem-se vigorosamente, os braços gesticulam, os pulmões pedem ar… Só mais um pouco, só mais um esforço… A água enche-me a boca e no minuto seguinte a minha cabeça irrompe por entre as ondas, o rosto fustigado pela espuma… e acordo sobressaltada, debruçada sobre a mesa onde adormeci.

O gira-discos arranha rouca e incessantemente a canção celta. Lá fora a tempestade ruge, e o vento uiva e fustiga as janelas e os acordes da música combinam com aquele cenário. A casa, única na praia, suporta as investidas sem queixume, habituada à areia e ao sal. O bote permanece, apesar da violência das ondas, intacto, amarrado ao cais de madeira. Da janela vejo o farol; a luz é forte e constante e, de súbito, enche-me de conforto. Sorrio, apago a luz da candeia, e vou dormir.

Friday, April 20, 2007

"Se uma gaivota viesse..."


Sexta-feira e o sol que se põe em Lisboa.

Espreito da minha janela - a cidade, vista de um 3º andar, parece expirar de alívio, depois de um dia de que só resta o cansaço. Às vezes, nestes momentos, parece que o tempo pára. As ruas, vistas cá de cima, parecem mergulhadas numa inércia flutuante que não consigo descrever. As pessoas parecem andar mais direitas, como se a Sexta-feira lhes trouxesse o alívio das cargas que transportam todos os dias. …Não que o dia seguinte seja muito melhor – mas há qualquer coisa de mágico no cair da tarde de uma Sexta-Feira.

Seja porque traz a sensação (por vezes equívoca) de dever cumprido, em mais uma semana que chega ao fim, ou porque é rodeada do “feeling” fervilhante da antecipação do que se reservou para essa noite ou para os próximos dias. Talvez seja apenas a possibilidade de, por uma vez, na semana inteira, ou em várias semanas, quem sabe, chegar a casa e deixarmo-nos cair no sofá, sem que ninguém nos lembre que há algo urgente a requerer a nossa atenção. Talvez seja o reencontro – famílias, amigos, namorados, namoradas... – pessoas que a semana nos roubou, reclamando o nosso tempo para “coisas mais importantes”. Para outros talvez seja a solidão, o sossego que a semana roubou por ser demasiado agitada.

Seja o que for… Gosto de olhar as pessoas que ainda cruzam as ruas a esta hora… gosto de tentar ver para lá do que vejo, saber o que as move, o que gostam no cair da tarde e para quê ou para quem têm pressa de voltar, correndo tão apressados, e ao mesmo tempo com um vislumbre de um sorriso na face… A florista, na esquina, com o carrinho ambulante, prepara tudo para voltar para casa, onde a esperam os filhos e o marido. O senhor, engravatado, homem novo, dirige-se para o parque de estacionamento, pensando que tem que levar o cão à rua. A rapariga, da minha idade, com uma braçada de livros, que, ao chegar a casa vão ser atirados para um canto. Gosto de olhar para eles e tentar perceber afinal porque gosto eu do cair da tarde ou o que me move a mim. Fico assim, observando, até as luzes da cidade se começarem a acender. A esquina está deserta. Olho para o céu, lusco-fusco, e percebo que ainda não foi desta que descobri. Não faz mal. Para a próxima, talvez.

Há qualquer coisa de mágico no cair da tarde de uma Sexta-Feira. Enquanto o sol desaparece, fecho os olhos, inspiro o ar fresco que anuncia a noite que se aproxima; e quase - quase - consigo ver a fadista naquela esquina, esquecida pelo tempo, que se enrola no xaile negro e atira a cabeça para trás, rouquejando: “Se uma gaivota viesse... trazer-me o céu de Lisboa…”

Friday, April 13, 2007


Ter alguém que adivinha o que nos vai na mente, que nos entende sem que seja preciso explicar ou sequer verbalizar, que nos surpreende dia-a-dia, que com um abraço cura todas as maleitas do mundo, que sem dizer nada ou apenas por se sentar ali ao lado nos faz sentir menos sozinhas, que percebe a magnitude de uma lágrima ou de um silêncio, que sabe dizer a diferença entre cada uma das nossas expressões ou tons de voz ou sorrisos, que partilha as nossas preocupações e alegrias, as nossas angústias e desesperos, a nossa dor e o nosso choro, as nossas euforias e os nossos risos, todas as horas, todos os dias...tornando-se indissociável de quem nós somos.

Que preço tem isso?

...não faço ideia, mas eu devo ser muito, muito rica.

Sunday, December 31, 2006

Goodbye

"A morte é a ladra que leva as pessoas para sempre quando ainda há coisas para dizer e fazer..." (AnaLu* Catarino)

"You were once my one companion
You were all that mattered. . .

You were once a friend and father
Then my world was shattered. . .

Wishing you were somehow here again
Wishing you were somehow near. . .
Sometimes it seems if I just dreamed,
Somehow you would be here. . .

Wishing I could hear your voice again
Knowing that I never would. . .
Dreaming of you won't help me to do
All that you dreamed I could. . .

Passing bells and sculpted angels,
Cold and monumental,
Seem, for you,the wrong companions
You were warm and gentle. . .

(...)
Wishing you were somehow here again. . .
Knowing we must say goodbye. . .
Try to forgive, teach me to live. . .
Give me your strength to try. . .

No more memories,no more silent tears. . .
No more gazing across on wasted years. . .
Help me say... goodbye."