Thursday, April 14, 2011

Da consequência dos arrependimentos - Parte 1



Estou acordada desde as 05h56.

O relógio pendurado na parede do outro lado do quarto impede que me alheie da penosa parada que é o desfilar do tempo. Ainda há silêncio na enfermaria – ainda dormem. Ouço ressonar na cama ao lado - hoje, graças a Deus, dormiu e não andou a noite toda a gritar impropérios às enfermeiras. Eu já não durmo muito. São as dores – infectam-me o sono, corroem-no e eu desperto. Dói-me tudo. Doem-me as escaras que não me deixam ter posição, dói-me a garganta com este tubo estranho que me alimenta… dói-me a alma. De vazio, de metas inatingidas, da inércia que me encheu a prateleira de todos os sonhos que sonhei.

A minha cama é a 18. Não consigo ver o número por cima da minha cabeça, mas ouço-os. “Já mediste a tensão à 18?”. É esse o meu nome agora – sou a “18”. O meu nome deve estar escrito algures, suponho - num processo, com certeza - mas poucos o sabem ou usam e já não sobra quem o recorde. Já não há ninguém que se lembre e que lhes conte da mulher que fui, dos caracóis negros, dos lábios pintados de vermelho, do jardim de rosas brancas na casa da Foz. O meu refúgio. Todos os dias me lembro das lições de piano que dava na sala verde – as teclas, lisas e suaves sob os meus dedos, a música, o papel de parede esmeralda pálido e as portadas de madeira pintadas de branco abrindo-se no areal. Quem ocupará agora a minha casa? Quem se sentará na sala verde? Um casal com crianças, talvez? Ou talvez ninguém a queira, seja trancada e definhe, como eu. O que sucederá ao piano? Talvez seja vendido ao desbarato, ou talvez simplesmente seja deitado fora. O meu piano... A lembrança dá-me vontade de chorar. Tenho saudades de tocar. Consigo ver as minhas mãos, sobre o cobertor azul claro e branco: envelheceram; os dedos continuam longos, mas faltam-lhes a destreza de anos idos. Há quanto tempo não toco Schubert ou Brahms? Seria ainda sequer capaz? Também já não sobra quem o saiba.

Nunca casei. Não tive irmãos, nem filhos. Com o tempo, todos os que me diziam alguma coisa foram abalando, um a um. Agora estou só. Não tenho ninguém. Estou só… Deus, como dói. A única dor que se sobrepõe à da solidão é a amargura do arrependimento – de tanta coisa! Sobretudo, de ter lutado pouco. Devia ter lutado mais, acima de tudo pelo amor da minha vida. Mas deixei que me passasse ao lado. Devia ter lutado - mas um coração jovem despedaçado é frágil e fraco; não tem sabedoria ou resiliência. Agora, quando chega a hora das visitas, não me sentiria tão saudosista (como se pode ter saudades de algo que nunca se teve?). Quando chega essa hora, tento alhear-me do afecto que rodeia as mulheres à minha volta e da inveja que me assola. Fecho os olhos para não ver os maridos, os filhos, os netos. Mas deixar de ouvir é mais difícil. Há uma janela imediatamente do meu lado esquerdo – quando me deixam virada para esse lado é menos difícil abstrair-me dessa comoção: perco-me na cascata de telhados e cores que cai do castelo, derramando-se sobre a colina. Aprecio cada minuto quando estou nesta posição – deixo o meu coração ensopar-se nessas cores, percorro uma e outra vez com o olhar as fileiras de vidraças, as ruelas serpenteantes, as nuvens fofas de folhas verdes que se renovaram com a Primavera. Sei que, nessas alturas de contemplação, abro muito os olhos, como se tivesse medo de não conseguir abarcar tudo, de me esquecer do mais ínfimo pormenor. Tenho o olhar sedento de saudade de passear na rua, de ouvir os meus sapatos na calçada, de sentir o sol na cara – é uma melancolia que amarga a boca e me faz escorrer uma lágrima pela face.

Os médicos vêm de manhã. A minha médica é morena. Tem cabelo castanho-escuro, denso, um sorriso calmo e olhos negros; segura-me na mão e fala comigo todos os dias enquanto me ausculta e me vê as pernas, a barriga. Fala comigo apesar de eu não conseguir responder-lhe e de todos lhe dizerem que eu já não percebo o que me dizem. Ela não faz caso e eu fico-lhe grata por isso. No outro dia, veio um médico que nunca tinha visto antes – veio ver as minhas feridas. Jovem, garboso, cheio da certeza da sua beleza e inteligência, e cheio da arrogância de ter a vida inteira pela frente. Se soubesse como tudo passa, como tudo se esfuma… Mas quem costuma vir ver-me mais vezes é uma jovem de cabelo claro. É despachada e atenciosa, gosto dela. Está a acabar o curso. Está também perdida de amores pelo colega que vem ver a senhora da cama ao lado. Ele não sabe e ela acha que ninguém faz ideia. Oh, mas eu já vi desfilar muitas paixões ao longo dos anos e leio bem os olhos das pessoas. Se pudesse falar, seria para lhe dizer que não espere, que lho diga, que lute como eu não lutei. Que vale a pena, “tudo vale a pena, se a alma não é pequena.”

Mas ele lava as mãos, atira um alegre “Até logo, D. Maria!” e sai do quarto. Ela segue-o, como sempre, com o olhar. Quando ele dobra a porta e desaparece, ela suspira disfarçadamente, baixa os olhos por momentos e depois levanta-os para mim. “Vai atrás dele!” – apetece-me gritar – “Faz alguma coisa!" Mas não me sai nada; ela deve perceber desconforto em vez de incentivo na minha agitação, porque me aperta mão e brinda-me com um olhar supostamente compreensivo. Sorri. “Até amanhã, D. Irene…” – sussurra. E vai-se embora.

A noite cai devagar. Não me incomoda. Já não fico cá por muito tempo. Isso também não me incomoda. Deixei de ter uso, de qualquer modo – já não posso cuidar das rosas, nem dar lições de piano, nem tampouco lições de vida. Estou virada para a janela e vejo a primeira estrela da noite contra as grossas pinceladas de roxo e rosa do céu – quando era menina, rezava-lhe, mas hoje já não há desejo que me valha. Mas gostava que aquela miúda se atirasse de cabeça e lutasse. Concentro-me nesse desejo e fecho os olhos devagar. “Até amanhã, D. Irene…”.

7 comments:

La fille said...

:)

Anonymous said...

quando é que uma editora publica os teus textos?

Isa;)

Sara Freire said...

Quem sabe um dia... :)
Obrigada, amiga*

Unknown said...

Muito bom Sarocas!
Adorei!

Unknown said...

Muito bom Sarocas!
Adorei!

Maria said...

Pergunto-me como diabo se saberá que "aquele" é o tal? Como é que sabemos isso? Como é que sabemos que até pode valer a pena fazer figuras tristes? Que não nos vamos arrenpender???


Ai, que vida esta de D.Irene...

Maria said...

Pergunto-me como diabo se saberá que "aquele" é o tal? Como é que sabemos isso? Como é que sabemos que até pode valer a pena fazer figuras tristes? Que não nos vamos arrenpender???


Ai, que vida esta de D.Irene...