Tuesday, March 02, 2010

Vive-se melhor a inventar a verdade

“Vive-se melhor a inventar a verdade todos os dias, dizem-me. Faz de conta que não morres. Faz lá.” - Inês Pedrosa

…faz lá. Faz-me a vontade, e faz de conta que não foste a lado nenhum. Teríamos ido a Londres por esta altura, ou ao Egipto? Ultimamente penso nisso todos os dias. Fomos adiando tanta coisa…sonhos que deixaram de ser, esperanças que já não são. Fomos adiando tudo porque íamos viver para sempre.

E depois veio aquele telefonema. O dia em que tudo começou a correr mal. O teu corpo atraiçoou-te e à criança que carregavas contigo. Nunca mais foste a mesma. Não chores, dizias. Se não chorares, eu não choro. Mas choraste. Choraste a vida que te tinham roubado, choraste o filho que partiu antes de nascer, choraste a perda de uma quimera. Ficaste mais calada. Sorrias menos. A gargalhada que contagiava toda a gente tornou-se uma raridade. A luta contra o monstro que trazias dentro esgotava-te, mas nunca te queixavas. Nem desistias. Raios te partam, eras teimosa que nem uma porta. Mas estavas a perder a guerra e agora que penso nisso, sinto que o sabias.

Porque não me disseste? Lembro-me da nossa conversa antes do fim-de-semana e de como parecias não estar a dizer tudo: no meio das coscuvilhices rotineiras, das novidades, dos updates, havia qualquer coisa mais que não conseguiste frasear. Em vez disso, perguntaste-me quando iria a Paris e disseste-me que odiavas a tatuagem que eu tinha acabado de fazer. Eu ri-me. Sempre foste do contra. Estava atrasada para o comboio e despedimo-nos à pressa. Prometi que te ligava no fim-de-semana. …Nunca cheguei a ligar.

Repito vezes sem conta “não era assim que as coisas deviam ter sido”. Cada dia é uma lembrança gritante de como não era assim que as coisas deviam ter sido. Saiu tudo ao contrário. Não sei o que odeio mais: a ti por partires e me deixares sozinha, a falta que me fazes ou não ter podido salvar-te. Porque não pude salvar-te? Eu quis, mas tu não esperaste por mim. É demasiado tarde, disseram. E eu chamei-te, e gritei, mas tu não respondeste. Já não eras. Como foi? Sentiste-te leve? Envolvida por uma tranquilidade branca e morna? O teu bebé estava à tua espera? Para onde foste? Responde lá, que mal pode fazer? Eu não digo a ninguém…

Não me deixaram ver-te. Odiei-os a todos – não perceberiam eles que tu eras minha também? Percebiam, diziam. Não me faria bem. Para o diabo com isso, com as convenções, com o que me faz bem! Eu precisava de ti, da tua mão na minha, dos teus conselhos, de te abraçar e implorar-te que voltasses… precisava de ti para ultrapassar a falta de ti, mas não te tinha! Tive que reaprender-me, perspectivar-me sem ti. Conceito da treta. Falta-me um bocado. Que se faz com isso?

Diz-me, onde está agora o teu Deus? Deixa-me falar-Lhe, quero que me responda a umas quantas coisas e quero dizer-Lhe umas quantas verdades. E inscrevê-lo num curso qualquer, daqueles que ensinam as pessoas a rever as suas escolhas e a recuperar o sentido lógico. Quero gritar-Lhe o que não posso gritar na rua, porque já passou muito tempo e parece mal. Não, na rua, com os outros, não posso gritar que me fazes falta e que dói. Mas com Ele posso e Ele deixa. E eu preciso.

Sei que me vês, à noite, quando me deito, quando fecho os olhos com muita força, e Lhe peço que te dê um passe, um visto, uma autorização qualquer - sei lá como é que isso funciona! - para me vires ver. Prometo que não digo a ninguém… Vá lá. Quando abro os olhos não vejo nada para além da silhueta desvanecida da mobília, da luz pálida e inerte a intrometer-se pelas frestas das portadas da janela. Fecho os olhos outra vez e murmuro: Vá lá, vá lá… só desta vez... E repito, uma vez e outra até adormecer. Não importa se não é hoje, ou amanhã. Não me preocupa o tempo que demore. Há-de haver uma vez. Sei que há-de haver uma vez em que vais estar lá.