Wednesday, January 26, 2011

“What do I look like? The Wizard of Oz? You need a brain? You need a heart? Go ahead. Take mine. Take everything I have.”



O prato está em cima da mesa há horas. Arrefeceu.

A cozinha está mergulhada na penumbra, entrecortada apenas pelos fracos soluços da lâmpada. O frio viscoso que satura o ar rasteja, cola-se-me a cada cabelo, a cada centímetro de pele, como se se alimentasse da pele de galinha que me causa. Tudo me enoja neste ambiente: o chão de linóleo manchado, a mesa de pés ferrugentos, o frigorífico que geme uma agonia rotineira em surdina. E o ruído das patas de ratos sobre o linóleo, que deambulam experimentando as fronteiras do meu redor.

A minha alma está no prato. Agora está fria.
Sentada na velha cadeira, olho para aquela massa amorfa, enegrecida, e o pouco que se move reitera o meu nojo. Não teve sempre este aspecto: os golpes que lhe foram sendo desferidos ao longo do tempo - por outros, por mim! - despojaram-na de pureza e de inocência. Agora está infectada por rancor bolorento e castigo. Emana um cheiro fétido a mágoa e dor e arrependimento. É uma coisa enferma, moribunda, quase parece que respira com dificuldade – cicia e sibila e sussurra. Como todas as coisas enfermas, resiste e debate-se com a ideia e a hora de padecer, mas a sua súplica não me demove. Na verdade, não produz em mim qualquer emoção. Estou vazia. A minha alma está no prato.

Os ratos movem-se com pausas - testam a sua própria audácia e sobem para a mesa. A hesitação é facilmente vencida pela minha indiferença e acercam-se do prato, onde a coisa está cada vez mais inquieta e desassossegada. Eu fico a ver. A primeira dentada é a que vence as barreiras de propriedade. Depois, a cerimónia desvanece-se - apoderam-se dela como se fosse sua, sem acanhamento ou pudor, como se eu ali não estivesse. Comem-na crua e sangrante, rasgando pedaços com uma avidez crescente, imperturbáveis pelos silvos débeis que dela se ouvem. Tampouco a minha presença os incomoda – o meu desapego foi equivalente a oferecer-lhes o que era meu de mão beijada. …Como é que costuma dizer-se? “Dá-se-lhes um dedo, tomam-te logo o braço”?

A indignação interior compele-me a deixar a cadeira, lançando-me sobre a horda que se banqueteia: agarro-os com violência, eles mordem-me os dedos, as mãos, os braços. A dor não me refreia, atiro-os para longe da mesa e chega-me o som dos seus corpos sujos embatendo no chão, guinchos de protesto, patas afastando-se e de novo o silêncio.

Tenho a garganta seca de cedências a mais. A coisa arqueja e geme. Pego-lhe com mãos hesitantes – continua fria, o sangue pinga e um estertor percorre-a. “Não te preocupes... Não deixo que ninguém te tire mais nenhum bocado.”, sussurro. Lá fora a madrugada teima em tardar. Não há pista de luz no horizonte e não, não se aproxima uma epifania matutina. Abro a portinhola do meu peito e acomodo com cuidado o que resta da minha alma lá dentro. Não é grande coisa. Mas é minha.