Wednesday, February 15, 2012

O que foi que aconteceu?


"Quando uma mulher escolhe um homem é porque é mesmo aquele homem que ela quer. E se a escolha não for por interesse, só pode ser por amor."
- Margarida Rebelo Pinto

A mão que tinha livre moveu-se devagar em direcção à objectiva da máquina. Rodou-a gentilmente, focando a imagem que lhe chegava através da lente.

O dia chegava ao fim. A pouca distância, sentados num banco de jardim, um casal com ondas de prata no cabelo conversava. Ela repousava a cabeça no ombro dele e sorriam, as mãos enrugadas pautadas de artroses entrelaçadas, exibindo aros dourados no anelar.

Afastou a face por instantes, as mãos e braços imóveis, segurando a máquina no lugar, enquanto se permitia desviar o olhar por momentos da cena que captava. Sentiu a discreta pontada de inveja que bem conhecia relembrando-lhe, ciciante, que também ela desejava pertencer a alguém com quem partilhar o sol de Inverno num banco de jardim.

Exalou com aspereza, sacudindo momentaneamente os pensamentos incómodos e voltou a concentrar-se na fotografia. Carregou no botão - uma e outra vez, até a luz que desaparecia no horizonte decidir que o momento passara. O casal afastou-se em passos lentos e habituados sobre a calçada. Deixou-se ficar, sentada na relva, resistindo ao vento frio que a fazia encolher-se. À medida que os observava, não conseguia impedir-se de recordar aquela tarde.

Quando o viu, no Chiado, o braço sobre os ombros de uma mulher – de outra mulher – descendo a Rua do Carmo na sua direcção, gelou. Quisera atravessar a rua, dar meia volta e correr rua abaixo, esconder-se no elevador de Santa Justa – qualquer coisa que a poupasse daquele encontro, mas sentia-se sem forças e sem fôlego. Ele não a vira imediatamente – imerso na conversa com “a outra”, sorrindo sedutoramente, enquanto ela o abraçava pela cintura e ria com vontade do que quer que ele lhe sussurrara ao ouvido.

Não se considerava ingénua: Lisboa é uma cidade caprichosa, com manias de colocar as pessoas em rota de colisão umas com as outras. Ela equacionara aquela possível - senão provável - situação vezes sem conta no mundo da sua fantasia. Contudo, agora que se lhe deparava, não parecia conseguir agir e reagir do modo que ensaiara ao pormenor – o sorriso natural, a voz bem colocada, a postura desprendida do facto de haver outra pessoa a ocupar o lugar que já fora seu. Sabia (estava cansada de o repetir para si mesma) que o que haviam partilhado se perdera no tempo. Apesar disso, guardara uma pequena centelha de esperança de que, tal como ela se mantivera agarrada à memória do tempo que tinham passado juntos, guardando vago o lugar que era dele (embora não o admitisse nem a si mesma), também ele o fizesse. Mas agora, confrontada com a derradeira prova de que enquanto ela acarinhava fantasmas de coisas idas ele seguira em frente com a sua vida, as esperanças desfaziam-se em fumo e o coração em cinza sob o peso da humilhação que sentia.

Quando os olhos dele finalmente se pousaram nela, o reconhecimento abateu-se sobre ele - hesitou por um momento, as sobrancelhas erguidas e a boca entreaberta pendurada num cumprimento irresoluto. Ela sentiu a alma transbordar e decidiu finalmente que não era capaz, virando-se para a montra da “Livraria Portugal” antes que “a outra” se apercebesse da sua presença. Pelo canto do olho apercebeu-se que ele abrandara o passo, mas vendo-a voltar-se de costas, continuou o seu caminho sem se deter. Seguiu o reflexo dele na vitrina da livraria, olhando para ela complacente à medida que passava, e a voz de mulher que se ouvia do carro de fados entoava o lamento que também era o seu: “Onde foi que nos perdemos? Meu amor... o que foi que aconteceu?” Permaneceu ali, feita monumento à tristeza, desejando que o “Kafka à beira-mar” pudesse erguer-se do expositor e viesse limpar-lhe as lágrimas e que o “Baunilha e Chocolate” pudesse trazer-lhe algum consolo. Ficou assim, olhando as capas dos livros até muito tempo depois de deixar de o ver no vidro. Tanto que, quando se deu conta, estava exausta de chorar em silêncio e o sol já se pusera.

O sol já se pusera também ali, na colina de Sant’Ana, derramando uma linha de lava no horizonte e o frio finalmente levava a melhor. Arrumou a Nikon, vestiu o casaco e, ajeitando o lenço à volta do pescoço, dirigiu-se para o metro em passo desapressado. Quando chegou à plataforma não havia sinais do metro. Percorreu-a devagar e foi sentar-se ao lado de uma mulher elegante, acompanhada do filho, que procurava freneticamente algo dentro de uma mochila azul. Finalmente, estendeu o papel à mãe, o desenho de grossas linhas pretas colorido em combinações de tons de lápis de cor que não faziam sentido a menos que se possuísse a visão de um miúdo de 6 anos, os traços irregulares num universo caótico que ultrapassava sem regra os limites das formas.

- É para o Pai!

- É bonito! Ele vai gostar.

- Mas eu não consigo pintar só dentro das linhas, como tu pintas.

- Um dia, quando fores mais velho – assim da minha idade – também vais conseguir. – respondeu ela com um sorriso.

Enfureceu-se em silêncio.
Quem é que decidiu que quando crescemos temos todos de pintar dentro das linhas?! Quem é que decidiu ignorar as coisas que nos distinguem, como se fossem imundas?! Quem é que decidiu que arriscar é socialmente inaceitável?! Mortos por dentro, sim; mas irrepreensíveis! God forbid we should cross a line! Se ter arriscado lhe doía? Horrores, mas voltaria a fazer tudo da mesma maneira. Era crente de que arriscar era uma tremenda prova de coragem e que, com um pouco de sorte, podia alcançar-se algo que valia muito a pena a dor que pudesse sentir.

Ela conseguira-o. O facto de o ter perdido era um assunto totalmente diferente. Por isso, até que alguém lhe provasse o contrário, e mesmo que demorasse algum tempo até conseguir voltar a pegar num lápis de cor, continuaria a pintar fora das linhas. ...Quem sabe, podia ser que tivesse a mesma sorte duas vezes.