Tuesday, May 29, 2012

Da tua ausência

"No light, no light in your bright blue eyes (...)
You can't choose what stays and what fades away 
And I'd do anything to make you stay 
No light, no light, tell me what you want me to say." 
[Florence + The Machine] 


Sinto-me oca. Estou sentada no chão, encostada ao tronco rugoso e quente de um carvalho, e sinto-me oca. O outono da minha alma cobriu-me de folhas secas. Pareço uma boneca de trapos, mas cheia de folhas secas. Sinto frágil o meu coração, as suas paredes de folhas carcomidas e crepitosas, que britam um pouco mais com cada sístole. Não ejecta sangue, já não sobra nenhum. Só ar. O meu cabelo são folhas que se desfazem sobre os meus ombros e vão caindo no meu regaço, onde tenho pousadas as mãos, pálidas de não haver sangue que lhes chegue. A cor dos meus olhos são folhas partidas: secam e ferem o olhar, que deixei fixo no vazio, um olhar de folhas mortas, de esperanças iludidas e remorso. 

Ficou tanto – tudo! – por dizer. Se te encontrasse agora ficaria muda, sufocada por todas essas coisas que ficaram por dizer. Engraçado como achamos que tudo se diz na troca de um olhar. Engraçado, não, na verdade não tem piada nenhuma. Mas a nossa sofreguidão faz-nos querer beber avidamente as pequenas (in)certezas de um olhar, de um toque, de um sussurro, sem disputa ou argumento. O que se faz, então, quando percebemos que estivemos o tempo todo a morrer à sede? 

Se pudesse, dir-te-ia o quão sinto a tua falta, talvez mais do que deveria. Dir-te-ia que te vejo em todo o lado – na televisão, no trabalho, na rua – e que desanimo por nunca te ver. Dir-te-ia que cada vez que a Florence ou o Caetano cantam no rádio do meu carro me lembro de ti, só de ti, vezes sem conta. Dir-te-ia como lamento ter-te ferido. Acreditarias se te dissesse que me arrependi instantaneamente? Provavelmente não. A angústia de te ver olhar para mim assim – incrédulo, zangado! – assalta-me sempre que fecho os olhos. Quis impedir-te, chamar-te, gritar-te que esperasses e me deixasses explicar, mas tu saíste, sem a esmola de uma palavra sequer. Procurei-te por todo o lado. E quando te encontrei não fui capaz de te dizer o que queria, que fora tudo um mal-entendido, que não tinha querido dizer aquilo, que me perdoasses, que estava apaixonada por ti. …e como estava apaixonada por ti naquela altura! 

Penso se alguma vez me quiseste e o monte de folhas no meu peito amarfanha-se um pouco mais no vazio que são agora os meus dias. As minhas estações transformaram-se todas em outonos. As recordações sucedem-se no desenrolar lento do tempo e com elas as perguntas que ficaram sem resposta. Ocupo os meus segundos revivendo cada momento, uma e outra vez em busca dessas respostas que não tive e o monte de folhas queixa-se da crueldade. A música que deixaste tocar porque eu gostava. O teu abraço. A vez em que me vieste ajudar. A fotografia que me tiraste. O toque da tua mão na minha sob as luvas. O teu sussurro no meu ouvido. A maneira como olhavas para mim, os teus olhos penetrantes com esse jeito de fintar todas as minhas camadas até me contemplares inteira, desprovida de máscaras ou rodeios. 

Mordo o lábio. Já não interessa, tudo isso se perdeu no meio do tempo que passou por nós. O tempo que tornou distantes os momentos de ontem, o tempo que afasta demasiado depressa a última vez que te vi, o tempo que passou melhor por ti do que por mim. Sinto-me ingénua por persistir na esperança quixotesca de que ainda te lembres. Ingénua. Tão ingénua. Se tivesse sangue, corava. 

Solto um gemido agonizado. O primeiro em muito tempo. O primeiro, ponto final. O desalento engrossa e adensa-se; ensopa-me, toma de assalto as minhas entranhas, transborda pelos olhos e queima-me a garganta. Tenho medo que pegue fogo ao monte de folhas no meu peito! Mas não. Apara a primeira gota dos meus olhos que o desfaz num monte de caules secos e pó. As minhas recordações também se esboroaram em pó que enche as minhas mãos sem sangue. Olho com olhos cegos as nuvens que se amontoam numa massa pardacenta no meu céu – vai começar a chover.

Wednesday, February 15, 2012

O que foi que aconteceu?


"Quando uma mulher escolhe um homem é porque é mesmo aquele homem que ela quer. E se a escolha não for por interesse, só pode ser por amor."
- Margarida Rebelo Pinto

A mão que tinha livre moveu-se devagar em direcção à objectiva da máquina. Rodou-a gentilmente, focando a imagem que lhe chegava através da lente.

O dia chegava ao fim. A pouca distância, sentados num banco de jardim, um casal com ondas de prata no cabelo conversava. Ela repousava a cabeça no ombro dele e sorriam, as mãos enrugadas pautadas de artroses entrelaçadas, exibindo aros dourados no anelar.

Afastou a face por instantes, as mãos e braços imóveis, segurando a máquina no lugar, enquanto se permitia desviar o olhar por momentos da cena que captava. Sentiu a discreta pontada de inveja que bem conhecia relembrando-lhe, ciciante, que também ela desejava pertencer a alguém com quem partilhar o sol de Inverno num banco de jardim.

Exalou com aspereza, sacudindo momentaneamente os pensamentos incómodos e voltou a concentrar-se na fotografia. Carregou no botão - uma e outra vez, até a luz que desaparecia no horizonte decidir que o momento passara. O casal afastou-se em passos lentos e habituados sobre a calçada. Deixou-se ficar, sentada na relva, resistindo ao vento frio que a fazia encolher-se. À medida que os observava, não conseguia impedir-se de recordar aquela tarde.

Quando o viu, no Chiado, o braço sobre os ombros de uma mulher – de outra mulher – descendo a Rua do Carmo na sua direcção, gelou. Quisera atravessar a rua, dar meia volta e correr rua abaixo, esconder-se no elevador de Santa Justa – qualquer coisa que a poupasse daquele encontro, mas sentia-se sem forças e sem fôlego. Ele não a vira imediatamente – imerso na conversa com “a outra”, sorrindo sedutoramente, enquanto ela o abraçava pela cintura e ria com vontade do que quer que ele lhe sussurrara ao ouvido.

Não se considerava ingénua: Lisboa é uma cidade caprichosa, com manias de colocar as pessoas em rota de colisão umas com as outras. Ela equacionara aquela possível - senão provável - situação vezes sem conta no mundo da sua fantasia. Contudo, agora que se lhe deparava, não parecia conseguir agir e reagir do modo que ensaiara ao pormenor – o sorriso natural, a voz bem colocada, a postura desprendida do facto de haver outra pessoa a ocupar o lugar que já fora seu. Sabia (estava cansada de o repetir para si mesma) que o que haviam partilhado se perdera no tempo. Apesar disso, guardara uma pequena centelha de esperança de que, tal como ela se mantivera agarrada à memória do tempo que tinham passado juntos, guardando vago o lugar que era dele (embora não o admitisse nem a si mesma), também ele o fizesse. Mas agora, confrontada com a derradeira prova de que enquanto ela acarinhava fantasmas de coisas idas ele seguira em frente com a sua vida, as esperanças desfaziam-se em fumo e o coração em cinza sob o peso da humilhação que sentia.

Quando os olhos dele finalmente se pousaram nela, o reconhecimento abateu-se sobre ele - hesitou por um momento, as sobrancelhas erguidas e a boca entreaberta pendurada num cumprimento irresoluto. Ela sentiu a alma transbordar e decidiu finalmente que não era capaz, virando-se para a montra da “Livraria Portugal” antes que “a outra” se apercebesse da sua presença. Pelo canto do olho apercebeu-se que ele abrandara o passo, mas vendo-a voltar-se de costas, continuou o seu caminho sem se deter. Seguiu o reflexo dele na vitrina da livraria, olhando para ela complacente à medida que passava, e a voz de mulher que se ouvia do carro de fados entoava o lamento que também era o seu: “Onde foi que nos perdemos? Meu amor... o que foi que aconteceu?” Permaneceu ali, feita monumento à tristeza, desejando que o “Kafka à beira-mar” pudesse erguer-se do expositor e viesse limpar-lhe as lágrimas e que o “Baunilha e Chocolate” pudesse trazer-lhe algum consolo. Ficou assim, olhando as capas dos livros até muito tempo depois de deixar de o ver no vidro. Tanto que, quando se deu conta, estava exausta de chorar em silêncio e o sol já se pusera.

O sol já se pusera também ali, na colina de Sant’Ana, derramando uma linha de lava no horizonte e o frio finalmente levava a melhor. Arrumou a Nikon, vestiu o casaco e, ajeitando o lenço à volta do pescoço, dirigiu-se para o metro em passo desapressado. Quando chegou à plataforma não havia sinais do metro. Percorreu-a devagar e foi sentar-se ao lado de uma mulher elegante, acompanhada do filho, que procurava freneticamente algo dentro de uma mochila azul. Finalmente, estendeu o papel à mãe, o desenho de grossas linhas pretas colorido em combinações de tons de lápis de cor que não faziam sentido a menos que se possuísse a visão de um miúdo de 6 anos, os traços irregulares num universo caótico que ultrapassava sem regra os limites das formas.

- É para o Pai!

- É bonito! Ele vai gostar.

- Mas eu não consigo pintar só dentro das linhas, como tu pintas.

- Um dia, quando fores mais velho – assim da minha idade – também vais conseguir. – respondeu ela com um sorriso.

Enfureceu-se em silêncio.
Quem é que decidiu que quando crescemos temos todos de pintar dentro das linhas?! Quem é que decidiu ignorar as coisas que nos distinguem, como se fossem imundas?! Quem é que decidiu que arriscar é socialmente inaceitável?! Mortos por dentro, sim; mas irrepreensíveis! God forbid we should cross a line! Se ter arriscado lhe doía? Horrores, mas voltaria a fazer tudo da mesma maneira. Era crente de que arriscar era uma tremenda prova de coragem e que, com um pouco de sorte, podia alcançar-se algo que valia muito a pena a dor que pudesse sentir.

Ela conseguira-o. O facto de o ter perdido era um assunto totalmente diferente. Por isso, até que alguém lhe provasse o contrário, e mesmo que demorasse algum tempo até conseguir voltar a pegar num lápis de cor, continuaria a pintar fora das linhas. ...Quem sabe, podia ser que tivesse a mesma sorte duas vezes.

Tuesday, September 27, 2011

Amoras e Abelhas



Dedicado a ti, com uma saudade imensa.

Abriu a velha persiana e afastou as cortinas poeirentas para deixar verter luz da manhã na pequena divisão, protegendo a boca e o nariz do pó que se levantara com a mão em concha sobre a face. Voltou-se para a contemplar - a sala de jantar (apenas assim chamada por conter um pequeno conjunto de mesa e cadeiras de jantar, apesar de ser demasiado pequena para merecer o nome), encontrava-se repleta de vultos brancos, onde a mobília se escondia debaixo dos lençóis coçados. Prendeu o cabelo e atou um lenço à cabeça. Um a um, foi destapando os móveis e, ao mesmo tempo, as memórias da sua infância.

Parecia que ainda conseguia ouvir os passos da avó na cozinha, o som que a despertava todas as manhãs. O distante crepitar do lume, aceso de madrugada na lareira de pedra, embalava a sua sonolência matinal e ela aninhava-se ainda mais debaixo dos lençóis. Quando o cheiro do café acabado de fazer se espalhava pelo quarto, abandonava o fofo monte de cobertores, ainda quente, e seguia descalça, camisa de dormir de flanela e a única boneca que possuía pendurada por um braço, até à sala de jantar. Deliciava-se com o cheiro a madeira de castanheiro envernizada, com a visão das arcas maciças cheias de toalhas e lençóis de linho, semeadas de bolas de naftalina. Em cima de uma delas, uma imagem de Jesus Cristo, mão erguida em sinal de bênção, expressão benevolente e chagas sangrantes, ostentava uma túnica imaculada e um halo dourado na cabeça. Imponente, a cantareira exibia os pratos brancos decorados com flores castanhas e cenas bucólicas. Na mesa, rodeada pelas seis cadeiras de costas, a toalha de renda estendia-se até ao chão, e sobre ela repousava a terrina de porcelana de Limoges, toda ela azul e ouro, que o Avô trouxera há muito de França, de presente para a Avó.

Escondia-se debaixo da mesa sem fazer barulho, oculta pela toalha imaculada, e, abraçando a boneca, esperava. Não tardava muito até que o ouvisse – o Avô saía do quarto de calças, suspensórios sobre a camisola interior e uma toalha de rosto ao ombro. E então o ritual – ao encaminhar-se para a porta, detinha-se por um momento. Hesitava, voltava-se para sair, mas logo girava sobre os calcanhares e caminhava vagarosamente até à mesa. Levantava a toalha com a ponta dos dedos e com ar trocista dizia: “Ora, ora!”. Ela rastejava de debaixo da mesa e erguia os braços. O Avô pegava nela ao colo com um sorriso, dava-lhe um ruidoso beijo na face e levava-a com ele até à casa de banho, onde a instalava em cima do tampo de mármore do móvel branco. Adorava vê-lo fazer a barba - o cheiro do sabonete, o cantarolar baixinho enquanto o espalhava com o pincel pela face, a minúcia que investia no escanhoado. Não tardava e a Avó logo chamava, reclamando das cantorias que atrasavam o pequeno-almoço e arrefeciam o café. Sorriam baixinho, cúmplices na traquinice, e o Avô apressava-se então a lavar a cara com a água fria que corria nos canos gelados. Limpava-se num gesto rápido à toalha que trazia ao ombro e acomodava-a às suas cavalitas até à mesa, onde o pão feito pela avó já estava cortado e o queijo partido.

Era feliz na sua meninice. Gostava de acompanhar o Avô ao pinhal da família tratar das colmeias. O Avô era-lhes devotado, sussurrando-lhes palavras que a ela pareciam feitiços, pois nunca o picavam. “É preciso tratá-las com amor.”, dizia. Abria a colmeia e tirava o favo, partindo um pedaço pequeno, que lhe entregava, e do qual ia sugando o mel, puro e doce, enquanto percorriam os caminhos de terra batida que se insinuavam por entre as árvores até ao riacho que gorgolejava ao fundo das colinas.

No Verão, apanhavam amoras que brotavam, grandes e negras, das silvas que cresciam na beira dos caminhos; apanhavam tantas que ela tinha que carregá-las numa dobra do vestido. E quando por vezes se abatiam sobre eles as trovoadas da estação, chegavam a casa encharcados e a Avó barafustava – da menina, que vinha molhada até aos ossos e das manchas violáceas que as amoras imprimiam no vestido, que eram horríveis de tirar. Acomodava-os à lareira, envoltos em toalhas e ordenava-lhes que não saíssem dali até estarem secos, Deus os livrasse de apanharem uma pneumonia. E quando ela se virava de costas, o Avô sorria, travesso, e piscava-lhe o olho.

No Natal, ia com o Avô ao pinhal, que a deixava escolher o pinheiro que ela achasse ser o mais bonito para levar para casa, para o enfeitar com os doces da Avó. Enquanto o Avô cortava o pinheiro, ela apanhava pedaços de musgo e pedras, que colocava num cesto de vime, para fazer o presépio debaixo da árvore.

Aos serões, o Avô sentava-se com os pés à lareira, e fumava o cachimbo. A Avó tricotava camisolas para ela ou fazia crochet e contava-lhe histórias – a história da Pastora, que esperava inutilmente o regresso do apaixonado Zé Maria, que fora combater em França e por lá morrera; a história do Conde, a quem o Rei mandara assassinar a Condessa para que se casasse com a filha, Dona Silvana; a história da cesteira Deolinda, da mãe do menino cego, do moleiro velho e tantas outras…
Quando a história acabava, esgueirava-se para o colo do Avô e, meio “mole” do calor das brasas, brincava com o seu muito estimado relógio de bolso, um Ómega. Apenas o virava e revirava entre os dedos, acariciando a tampa trabalhada, abrindo-a de vez em quando para contemplar os números elegantes e os finos ponteiros de metal. Quando o Avô estendia a mão e pegava no relógio para anunciar que era tarde, fingia-se adormecida (pouco faltava, de qualquer modo), para que ele a levasse ao colo para a cama e a fosse aconchegar. O Avô sabia que ela fingia, e ela sabia que ele sabia, mas nenhum dos dois se descaía.

Custou-lhe abandonar o lar e a aldeia para ir para a faculdade, para tão longe. No momento da partida, o Avô acariciou-lhe a face com as suas mãos queimadas pelo sol e disse, a voz embargada: “Só tenho medo que não sejas feliz…”. Mas fora. Fizera amigos com facilidade e ingressara num curso que a apaixonava. Ia a casa sempre que podia e comemoravam os três as suas pequenas e grandes vitórias na cidade grande.

A morte do Avô veio no terceiro ano de faculdade, no dia do seu aniversário. O mundo desabou - nunca antes experimentara perda; aquando da morte dos pais era demasiado pequena para se lembrar do que quer que fosse. Chorara lágrimas que não sabia que tinha e fora invadida por uma dor que não concebera existir. Começou a compreender todos os contornos da palavra saudade, nos meses, nos anos que se seguiram. Em todos os momentos. Quando olhava para uma fotografia. Quando sentia inesperadamente o cheiro a cachimbo. Quando comia amoras. No Natal. No Verão. Porque sim. Quando acabou o curso. Quando começou a trabalhar. Ao longo de todo esse tempo foi percebendo que a ausência não apaga o amor de uma vida e mesmo quando casou, e percorreu a nave até ao altar sozinha, nunca se sentiu só…

Uma comoção lá fora despertou-a do seu devaneio – os pintores estavam a montar os andaimes ao longo da fachada da casa. O sol derramava agora luz a jorros para dentro da sala.
Uma pequena figura, de caracóis loiros, vestida com um pijama da “Hello Kitty” surgiu à porta da sala, ensonada e esfregando os olhos.
- “Mamã… é aqui que vamos viver agora?”
Ela descalçou as luvas de borracha, pousou o esfregão junto do balde e do decapante e ajoelhou-se junto dela.
- “Sim, querida.” – respondeu, afagando-lhe os cabelos e olhando em volta – “Esta é a nossa casa.”

Tuesday, August 30, 2011

Redenção


Saiu sem prestar atenção à porta do prédio, que ficou escancarada. Tinha só uma das mangas do casaco vestidas e contorcia-se para vestir a outra enquanto tentava correr – uma combinação com pouco sucesso. Corria sem parar, o mais depressa que conseguia, sem nunca lhe parecer suficiente. Evitava por um triz velhinhas com cães minúsculos à trela, esgueirava-se por entre bandos de pessoas de óculos escuros, fato e pasta, e esquivava-se de crianças irrequietas com uma destreza que mais se atribuiria à sorte do que à agilidade. O sol morno de Outono, que lançava reflexos fracos no seu cabelo fulvo, escondia-se de vez em quando por trás de uma fina cortina de nuvens cinzentas. Isso sabia-lhe a mau augúrio e fazia-o exigir mais das suas pernas. Doíam-lhe, mas não podia dar-se ao luxo de parar. Estava a correr contra o relógio – agora que chegara a uma conclusão, corria o risco de ter sido tarde demais. Era o desespero que o impelia.
Por dentro, recriminava-se por ter levado tanto tempo a tomar esta decisão; no fundo, alguma vez poderia ter decidido de outro modo? Sequer quereria? A resposta era não, e ele sempre o soubera, mas o orgulho impedira-o de o reconhecer para si próprio… Um pouco como o sol que ele não via, apesar de saber que estava lá.

Chegou ao metro – galgou as escadas, três degraus de cada vez e esgueirou-se no último momento pelas portas da carruagem, que se fechavam já sob um aviso estridente. Ofegante, olhou a plataforma que agora ficava para trás à medida que o metro ganhava velocidade. Consultou o relógio de pulso e os olhos azuis encheram-se-lhe de angústia.

-

Sentara-se na sala de espera do aeroporto com a bagagem de mão a seu lado. Sobre os joelhos, a revista que comprara jazia aberta, mas ela não a lia: levantava os olhos, instante a instante, em busca de um rosto que não surgia por entre os das pessoas que por ali deambulavam. De todas as vezes voltava a dirigir o olhar para a pretensa leitura, abanando a cabeça como que a condenar a sua ingenuidade. Ah, mas a expectativa não tardava a aguçar-lhe a curiosidade - os seus olhos retomavam a procura e a revista permanecia inerte na página em que fora aberta. Interiormente, recriminava-se por não conseguir extinguir a réstia de esperança que se barricara no seu âmago. Desejava bani-la, para que não pudesse sentir desilusão ou tristeza. Alguma vez acreditara que seria capaz? Sequer o desejaria francamente? A resposta era não e por isso mesmo há muito desistira de fingir-se verdadeiramente interessada no artigo sobre hidratantes faciais.

O tempo passava. Fizera o check-in há mais de uma hora, mas agora os vários relógios bem ao alcance dos seus olhos relembravam-lhe que pouco tempo faltava para a porta de embarque fechar. Com um gesto derrotado, fechou a revista e vencendo o impulso de olhar para trás, dirigiu-se para o controlo de bagagem de mão, onde inúmeras pessoas começavam a juntar-se.

-

As pernas pareciam-lhe dormentes enquanto corria pelo aeroporto, como se já não respondessem ao seu comando. Deteve-se, as sapatilhas derrapando no chão de mármore claro, para consultar o placard intitulado “Partidas”, em busca de algum alento. Não tinha muito tempo. Largou de novo em corrida, assolado pela questão que punha em causa o sucesso da sua demanda: “A porta de embarque está quase a fechar…E se ela já tiver passado pelo controlo de bagagem de mão?” Era, mais do que possível, provável, mas não queria pensar nisso. Galgou umas escadas rolantes e as várias entradas para o controlo de bagagem de mão surgiram à sua frente. O chão fugiu-lhe debaixo dos pés - estavam apinhadas de gente. Em desespero, começou a percorrer as faces uma a uma, fila a fila, numa busca condenada por todas as probabilidades.

Tinha já perscrutado a quarta fila, quando a viu a alguns metros de distância, numa fila com pouca gente: o cabelo comprido solto sobre os ombros e a écharpe cor de coral que ele lhe oferecera ao pescoço. Quis chamá-la, mas a alegria repentina que sentia prendeu-lhe as palavras na garganta. Viu-a estender o bilhete ao funcionário para verificação. Tossindo, recuperou o fôlego e libertou a voz. Cabeças várias se viraram na sua direcção, mas pouco lhe interessava. Ela fitava-o, de bilhete ainda na mão, uma expressão incrédula estampada no rosto rosado de emoção. Abandonou a fila e dirigiu-se a ele, primeiro num passo lento, depois correndo. Quis ir ao encontro dela, mas as pernas não lhe obedeciam, como se a corrida o tivesse drenado de todas as forças. Recebeu-a nos seus braços, envolvendo-a com força e disse-lhe ao ouvido: “Desculpa…” E ela, com os olhos a transbordar de água, sorriu e abraçou-o com mais força.
“Menina…” – era o funcionário do controlo. Desprendendo-se do enlace, ela assentiu com a cabeça, e voltou-se para o fitar.
“Tenho de ir…”
“Vai. Conversamos quando voltares.”, respondeu. Ela fez menção de pegar na mala, mas ele deteve-a subitamente, puxando-a ao de leve pela mão que ainda segurava na sua, assolado por uma dúvida repentina. Voltou-a de novo para si.
“…Tu vais voltar, não vais?”
Ela sorriu-lhe aquele sorriso que o desarmava, estendeu os braços em volta do seu pescoço e, juntando a sua testa à dele, disse-lhe: “Claro que vou.”
Já não tinham mais tempo. Soprou-lhe um beijo do outro lado do controlo de bagagem e afastou-se, sempre a olhar para ele, a acenar.

-

Acordou sobressaltado, encharcado em suores. Tremia ao de leve, sentado na cama. A náusea assolou-o de súbito, ao recordar o sonho que tivera. Levantou-se e foi encostar a cara ao vidro frio da janela. O coração doía-lhe, batendo desenfreado contra as grades da sua gaiola. Tentou concentrar-se no cenário que se estendia do outro lado do vidro para reprimir o vómito – a rua, mal iluminada pelas luzes ambáricas que bruxuleavam de quando a quando, estava deserta e o vento gélido de Dezembro vergava os ramos nus das árvores. Ao longe, ouviu um trovão. Afastou a cara da janela. Passou as mãos pela cara, pela barba por fazer, pelos olhos, comprimindo-os na tentativa de apagar o que vira. Depois, mecanicamente, dirigiu-se à secretária e acendeu o candeeiro. Ficou assim, de pé, olhando os jornais que se amontoavam desde há alguns meses e cujos cabeçalhos gritavam silenciosamente a antítese dos seus sonhos.

“Avião cai sobre a Alemanha – causas ainda por apurar”

“Acidente de avião faz 228 mortos”

“Acidente aéreo no Sul da Alemanha não deixou nenhum sobrevivente”


Sentiu o coração sucumbir, como de tantas outras vezes, sob o peso daquelas frases, e ir encostar-se, encolhido, a um canto da sua gaiola. Se ao menos…
Todas as noites revivia a decisão que tomara e a que devia ter tomado. Todas as noites punha o orgulho de lado, fazia o que estava certo, o que ela esperava dele, e ia ao aeroporto. A ideia dela, sozinha na sala de espera, procurando por ele até ao último minuto até se aperceber que ele não iria aparecer…torturava ainda mais o coração encolhido, que aceitava resignado, contrito, a culpa que lhe atribuíam.
Apoiou ambas as mãos na secretária e, exalando, deixou cair a cabeça em rendição.
“Se ao menos…”

Monday, May 02, 2011

Da consequência dos arrependimentos - Parte 2


“Te amo como se aman ciertas cosas oscuras,
secretamente, entre la sombra y el alma.”

Pablo Neruda

Estou atrasada - não ouvi o despertador e, como se não bastasse, agora perdi o comboio. Começamos bem o dia! Na plataforma, vou consultando o relógio de 5 em 5 segundos e espreitando a linha em bicos de pés na impaciência de ver a primeira carruagem surgir. A manhã vem soalheira – a luz dourada dança nas superfícies espelhadas e faz-me semicerrar os olhos. A brisa agreste vem povoada de sementes de dente-de-leão, nevão primaveril que vai deixando alguns flocos presos no meu cabelo. Consulto o relógio mais uma vez e bato o pé de impaciência. Odeio chegar atrasada.

Por fim, ei-lo. Gosto de ser envolvida pelo momento de vácuo que emudece o mundo precisamente na altura em que o som do comboio a aproximar-se se torna ensurdecedor. Dura apenas um milissegundo… e depois a explosão de som que se segue atira-me para trás o cabelo dourado e sacode dele as sementes de dente-de-leão que eu não tinha conseguido tirar. Quem dera que esse momento de quietude durasse, e eu pudesse ficar só um pouco mais entre o sonho e a realidade. Mas o mundo não pára assim tão facilmente.

A minha impaciência alonga a viagem de comboio mais do que seria necessário. A viagem de metro não é mais suportável, mas eu sou mesmo assim, auto-martirizadora. Enfim, chego ao Hospital. Consulto o relógio – são 8h53. Já não tenho tempo de vestir a bata, por isso apresso-me pelo corredor da enfermaria em direcção à Sala de Reuniões. Àquela hora já está cheia, por isso deixo-me ficar à entrada, de pé. A minha tutora cumprimenta-me com um breve aceno de cabeça, que eu retribuo. O relato da Urgência Interna continua, indiferente à minha interrupção:

- … pelo que foi transferida para a UCI onde se mantém em observação. De ocorrências, tivemos um óbito na cama 18…

Gaita. O meu pensamento descarrila e eu deixo de ouvir o resto. A D. Irene… Tento fazer o menos barulho possível ao sair. Chego aos cacifos em passo rápido, visto a bata e atiro o estetoscópio à volta do pescoço. Entro na enfermaria apressadamente, ainda a puxar o cabelo de dentro da bata, e detenho-me no quarto de que ia à procura - está vazio. A D. Maria deve ter ido à casa-de-banho e a D. Dulce teve alta ontem. Vou até à última cama, ao lado da janela. Enche-me um sentimento de impotência que me faz respirar fundo. Olho o número por cima da cabeceira, a cama vazia, a mesa de noite – e algo capta o meu olhar: esqueceram-se de alguma coisa dentro da gaveta. Vou ver – é uma bíblia. "Mas a D. Irene não conseguia lê-la", penso, "porque teria isto com ela?". Folheio-a distraidamente e alguma coisa cai de entre as páginas amarelecidas. Apanho a fotografia do chão - é antiga; o papel é grosso, rugoso entre os meus dedos, a borda é recortada às ondas, como antigamente, e o momento foi capturado em tons de sépia. Uma mulher jovem, lindíssima, de cabelo preto aos caracóis, sorri ao lado de um homem, também sorridente, no meio de um jardim de rosas. Ele tem um braço por cima dos ombros dela e ela tem uma mão sobre o peito dele. Viro a fotografia – no verso lê-se “Irene e António, 1938”. Na televisão, ligada num desses programas da manhã, ouve-se uma voz plena de mel e carícias: “Eu sei que vou te amar / Por toda a minha vida, eu vou te amar…”

Sou sobressaltada pela enfermeira, que entra no quarto com o dinamap. Levo a fotografia ao bolso num gesto rápido e irreflectido, volto a pôr a bíblia onde estava e saio do quarto, o coração a pulsar desenfreado na minha garganta, em direcção à nossa sala, ainda deserta. Tiro a fotografia do bolso e volto a olhar a face da jovem D. Irene e quase não acredito que seja a mesma mulher. Mas ela não era casada, penso. Nunca veio cá ninguém. Que seria feito deste António? Teria morrido? Ter-se-iam separado? Penso nela, deitada na sua cama, a olhar pela janela e na morte solitária que teve e sinto-me angustiada.

Subitamente, o som dos teus passos no corredor desperta-me deste devaneio. Quão patético é que eu reconheça os teus passos? Sinceramente? Quase não te conheço e tu não me conheces de todo. E apesar disso, sem lógica ou sentido, afectas-me a um ponto que não compreendo. Reconheço a tua voz sem te ver e reconheço a tua face à distância por entre a multidão. Antes de entrares em qualquer sala, arrepio-me. Quando me olhas, fazes-me estremecer; é quase como se me electrocutasses e então cada nervo meu se inflama, cada centímetro de pele irrompe em chamas e o meu cérebro derrete neste fogo que consome tudo à nossa volta por momentos, sem tu pareceres dar-te conta.

Guardo novamente a fotografia no bolso da bata, mesmo a tempo de entrares. A reunião deve ter acabado. Cumprimentas-me, sentas-te ao computador e abres diligentemente um dos teus processos. O resto da equipa não deve tardar, devem ter ido beber café. De repente, suspiras e dizes:

- Isto hoje está o caos… Acreditas que também morreu uma doente nossa, sem família, sem ninguém?

Levo a mão ao bolso e aperto a fotografia ao de leve entre os dedos; penso na D. Irene, no seu ar de felicidade ao lado daquele homem, no desfecho da história e em como não quero que o mesmo me aconteça apenas por não ter tentado. Levanto-me sem hesitações, vou até ti e encosto-me na borda da tua secretária. Estendo suavemente uma mão sobre a página que estavas a ler, num gesto impeditivo e, retribuindo sem medos ou inseguranças o olhar que levantaste para mim, digo-te:

- Vem. Vamos beber um café.

Thursday, April 14, 2011

Da consequência dos arrependimentos - Parte 1



Estou acordada desde as 05h56.

O relógio pendurado na parede do outro lado do quarto impede que me alheie da penosa parada que é o desfilar do tempo. Ainda há silêncio na enfermaria – ainda dormem. Ouço ressonar na cama ao lado - hoje, graças a Deus, dormiu e não andou a noite toda a gritar impropérios às enfermeiras. Eu já não durmo muito. São as dores – infectam-me o sono, corroem-no e eu desperto. Dói-me tudo. Doem-me as escaras que não me deixam ter posição, dói-me a garganta com este tubo estranho que me alimenta… dói-me a alma. De vazio, de metas inatingidas, da inércia que me encheu a prateleira de todos os sonhos que sonhei.

A minha cama é a 18. Não consigo ver o número por cima da minha cabeça, mas ouço-os. “Já mediste a tensão à 18?”. É esse o meu nome agora – sou a “18”. O meu nome deve estar escrito algures, suponho - num processo, com certeza - mas poucos o sabem ou usam e já não sobra quem o recorde. Já não há ninguém que se lembre e que lhes conte da mulher que fui, dos caracóis negros, dos lábios pintados de vermelho, do jardim de rosas brancas na casa da Foz. O meu refúgio. Todos os dias me lembro das lições de piano que dava na sala verde – as teclas, lisas e suaves sob os meus dedos, a música, o papel de parede esmeralda pálido e as portadas de madeira pintadas de branco abrindo-se no areal. Quem ocupará agora a minha casa? Quem se sentará na sala verde? Um casal com crianças, talvez? Ou talvez ninguém a queira, seja trancada e definhe, como eu. O que sucederá ao piano? Talvez seja vendido ao desbarato, ou talvez simplesmente seja deitado fora. O meu piano... A lembrança dá-me vontade de chorar. Tenho saudades de tocar. Consigo ver as minhas mãos, sobre o cobertor azul claro e branco: envelheceram; os dedos continuam longos, mas faltam-lhes a destreza de anos idos. Há quanto tempo não toco Schubert ou Brahms? Seria ainda sequer capaz? Também já não sobra quem o saiba.

Nunca casei. Não tive irmãos, nem filhos. Com o tempo, todos os que me diziam alguma coisa foram abalando, um a um. Agora estou só. Não tenho ninguém. Estou só… Deus, como dói. A única dor que se sobrepõe à da solidão é a amargura do arrependimento – de tanta coisa! Sobretudo, de ter lutado pouco. Devia ter lutado mais, acima de tudo pelo amor da minha vida. Mas deixei que me passasse ao lado. Devia ter lutado - mas um coração jovem despedaçado é frágil e fraco; não tem sabedoria ou resiliência. Agora, quando chega a hora das visitas, não me sentiria tão saudosista (como se pode ter saudades de algo que nunca se teve?). Quando chega essa hora, tento alhear-me do afecto que rodeia as mulheres à minha volta e da inveja que me assola. Fecho os olhos para não ver os maridos, os filhos, os netos. Mas deixar de ouvir é mais difícil. Há uma janela imediatamente do meu lado esquerdo – quando me deixam virada para esse lado é menos difícil abstrair-me dessa comoção: perco-me na cascata de telhados e cores que cai do castelo, derramando-se sobre a colina. Aprecio cada minuto quando estou nesta posição – deixo o meu coração ensopar-se nessas cores, percorro uma e outra vez com o olhar as fileiras de vidraças, as ruelas serpenteantes, as nuvens fofas de folhas verdes que se renovaram com a Primavera. Sei que, nessas alturas de contemplação, abro muito os olhos, como se tivesse medo de não conseguir abarcar tudo, de me esquecer do mais ínfimo pormenor. Tenho o olhar sedento de saudade de passear na rua, de ouvir os meus sapatos na calçada, de sentir o sol na cara – é uma melancolia que amarga a boca e me faz escorrer uma lágrima pela face.

Os médicos vêm de manhã. A minha médica é morena. Tem cabelo castanho-escuro, denso, um sorriso calmo e olhos negros; segura-me na mão e fala comigo todos os dias enquanto me ausculta e me vê as pernas, a barriga. Fala comigo apesar de eu não conseguir responder-lhe e de todos lhe dizerem que eu já não percebo o que me dizem. Ela não faz caso e eu fico-lhe grata por isso. No outro dia, veio um médico que nunca tinha visto antes – veio ver as minhas feridas. Jovem, garboso, cheio da certeza da sua beleza e inteligência, e cheio da arrogância de ter a vida inteira pela frente. Se soubesse como tudo passa, como tudo se esfuma… Mas quem costuma vir ver-me mais vezes é uma jovem de cabelo claro. É despachada e atenciosa, gosto dela. Está a acabar o curso. Está também perdida de amores pelo colega que vem ver a senhora da cama ao lado. Ele não sabe e ela acha que ninguém faz ideia. Oh, mas eu já vi desfilar muitas paixões ao longo dos anos e leio bem os olhos das pessoas. Se pudesse falar, seria para lhe dizer que não espere, que lho diga, que lute como eu não lutei. Que vale a pena, “tudo vale a pena, se a alma não é pequena.”

Mas ele lava as mãos, atira um alegre “Até logo, D. Maria!” e sai do quarto. Ela segue-o, como sempre, com o olhar. Quando ele dobra a porta e desaparece, ela suspira disfarçadamente, baixa os olhos por momentos e depois levanta-os para mim. “Vai atrás dele!” – apetece-me gritar – “Faz alguma coisa!" Mas não me sai nada; ela deve perceber desconforto em vez de incentivo na minha agitação, porque me aperta mão e brinda-me com um olhar supostamente compreensivo. Sorri. “Até amanhã, D. Irene…” – sussurra. E vai-se embora.

A noite cai devagar. Não me incomoda. Já não fico cá por muito tempo. Isso também não me incomoda. Deixei de ter uso, de qualquer modo – já não posso cuidar das rosas, nem dar lições de piano, nem tampouco lições de vida. Estou virada para a janela e vejo a primeira estrela da noite contra as grossas pinceladas de roxo e rosa do céu – quando era menina, rezava-lhe, mas hoje já não há desejo que me valha. Mas gostava que aquela miúda se atirasse de cabeça e lutasse. Concentro-me nesse desejo e fecho os olhos devagar. “Até amanhã, D. Irene…”.

Wednesday, February 23, 2011

É tarde. Ou cedo, conforme.


Madrugada.
Saiu do elevador para o hall mal iluminado e percorreu ausente, a mente dormente, o corredor de azulejos que já teriam sido brancos, algures há muito tempo. Rodou a chave na fechadura com um gesto habituado - o som pareceu ecoar mais alto, durante mais tempo. Suspirou.

Largou a mochila mal entrou, sem se dar ao trabalho de a mover de onde caíra. O capacete não – ao capacete tinha amor. Colocou-o religiosamente, juntamente com as chaves da mota, no móvel da entrada, onde não cabia mais nada: uma BTT de esguelha, o equipamento de mergulho, a guitarra, a máquina fotográfica e uma bola de futebol – tudo coisas que já não usava há mais tempo do que gostaria.

Na sala, caixotes de cartão amontoavam-se nos cantos. Estava exausto. Deixou-se cair de barriga para baixo no sofá, esticou o braço para o comando, não chegava lá, esticou-se mais, esticou os dedos, isto já conta como uma ida ao ginásio, finalmente conseguiu. Procurou um canal aparentemente inócuo e deixou a mente divagar. Como qualquer interno cuja vida se resuma ao Hospital, os seus pensamentos foram inevitavelmente parar ao Serviço – as análises para 2ª Feira, a nota de alta que tinha que adiantar e... Poor bastard, nem meio a dormir consegues pensar noutra coisa? É tarde. Ou cedo, conforme. Vê se dormes. Tarde…será tarde demais para lhe ligar? És mesmo um idiota, é de madrugada, ele ainda deve estar a dormir. Não lhe apetecia estar sozinho, já nem sequer estava muito habituado, devia ter ido antes para lá. E daí, não, não devia, ia acordá-lo de madrugada por razão nenhuma.

Tinham-se conhecido num café, numa tarde chuvosa. Dois dedos de conversa e café. Fora tudo quanto fora preciso. E muito mais tardes depois dessa. Tudo mudara - agora existiam planos, partilha, e qualquer coisa daquele género passeios-de-mãos-dadas-fazer-uma-serenata-passar-o-dia-inteiro-contigo-na-cama. E começara a viver verdadeiramente desde essa altura.

Não surpreendentemente, lembrava-se igualmente do dia em que morrera. Numa daquelas já raras visitas a casa dos pais, durante um daqueles intermináveis jantares onde a austeridade do pai dominava a mesa com um chicote de fel. As perguntas acres – e pior, as críticas e julgamentos imerecidos – com que o brindava eram uma constante. Tens que te fazer um homem a sério, casar; sim, porque afinal, a tua mãe quer netos. Parecera-lhe inútil continuar a evitar falar do assunto ou continuar a inventar desculpas - confirmar-lhe as suspeitas parecia estranhamente libertador. Disparara a palavra “namorado” no meio de outras tantas que perderam importância e das quais não se recordava. Ouvira o som de talheres a tinir. O pai ficara lívido, uma máscara de nojo e raiva. A mãe encolhera-se, a cara nas mãos, e começara a chorar em surdina. Dirigiu-lhe um olhar ferido - sempre soube que ela sempre soubera. O medo e submissão sempre tinham vencido a coragem para o apoiar – não ia mudar agora. Fingir desconhecimento era mais simples, evitava ter que lidar com o assunto, com o preconceito e as fúrias do marido. De tanto fingir acabou por se convencer de que era verdade, que não sabia de nada. Que importava agora? Pouco ou nada. Levantara-se sem um som, sem uma palavra. Se não mudas, escusas de voltar, estás morto para mim, dissera o pai. Gritara – hoje não se recordava de ouvir o que dissera, as memórias surgiam-lhe sem som, mas sabia que gritara. Atingira o pai com toda a mágoa de um filho mal amado e incompreendido, com toda a frustração de uma vida em busca de um gesto de aprovação, com a profecia da morte solitária e amarga que com certeza teria. Ele não sabia nada de amor. Nunca vira nada além dos curtos horizontes da sua mente tacanha. Não conhecia nada que não fossem as suas preciosas regras, os seus inamovíveis limites, os seus sagrados e inflexíveis valores morais com os quais escrutinava todos quantos o rodeavam. Não sabia nada de amor.

Saíra sem olhar e só parou quando chegou junto dele – ele era a sua casa agora. Nunca mais vira o pai. Não chorara quando a mãe lhe telefonara a contar, entre soluços, do AVC. Não fora ao funeral. Não precisava – não tinha nada por que chorar, nada para dizer; naquela noite arrumara todos os assuntos com aquele homem, que de pai só o fora de nome. Sem se aperceber, arrumara também os preconceitos para fora da sua vida, com a promessa de que ninguém mais o faria acreditar que o que o fazia tão feliz era errado, e mau, e blasfemo. E como era feliz agora...

A primeira luz da manhã anunciava-se ténue na janela. O som do telefone acordou-o com sobressalto do sono leve em que vagueava. Era ele.
“Já estás em casa? Os tipos das mudanças estão aí daqui a uma hora… Estás pronto?”
Olhou em volta – caixotes selados, prateleiras vazias, paredes nuas.
“Sim”, respondeu, “estou pronto.”