Tuesday, September 27, 2011

Amoras e Abelhas



Dedicado a ti, com uma saudade imensa.

Abriu a velha persiana e afastou as cortinas poeirentas para deixar verter luz da manhã na pequena divisão, protegendo a boca e o nariz do pó que se levantara com a mão em concha sobre a face. Voltou-se para a contemplar - a sala de jantar (apenas assim chamada por conter um pequeno conjunto de mesa e cadeiras de jantar, apesar de ser demasiado pequena para merecer o nome), encontrava-se repleta de vultos brancos, onde a mobília se escondia debaixo dos lençóis coçados. Prendeu o cabelo e atou um lenço à cabeça. Um a um, foi destapando os móveis e, ao mesmo tempo, as memórias da sua infância.

Parecia que ainda conseguia ouvir os passos da avó na cozinha, o som que a despertava todas as manhãs. O distante crepitar do lume, aceso de madrugada na lareira de pedra, embalava a sua sonolência matinal e ela aninhava-se ainda mais debaixo dos lençóis. Quando o cheiro do café acabado de fazer se espalhava pelo quarto, abandonava o fofo monte de cobertores, ainda quente, e seguia descalça, camisa de dormir de flanela e a única boneca que possuía pendurada por um braço, até à sala de jantar. Deliciava-se com o cheiro a madeira de castanheiro envernizada, com a visão das arcas maciças cheias de toalhas e lençóis de linho, semeadas de bolas de naftalina. Em cima de uma delas, uma imagem de Jesus Cristo, mão erguida em sinal de bênção, expressão benevolente e chagas sangrantes, ostentava uma túnica imaculada e um halo dourado na cabeça. Imponente, a cantareira exibia os pratos brancos decorados com flores castanhas e cenas bucólicas. Na mesa, rodeada pelas seis cadeiras de costas, a toalha de renda estendia-se até ao chão, e sobre ela repousava a terrina de porcelana de Limoges, toda ela azul e ouro, que o Avô trouxera há muito de França, de presente para a Avó.

Escondia-se debaixo da mesa sem fazer barulho, oculta pela toalha imaculada, e, abraçando a boneca, esperava. Não tardava muito até que o ouvisse – o Avô saía do quarto de calças, suspensórios sobre a camisola interior e uma toalha de rosto ao ombro. E então o ritual – ao encaminhar-se para a porta, detinha-se por um momento. Hesitava, voltava-se para sair, mas logo girava sobre os calcanhares e caminhava vagarosamente até à mesa. Levantava a toalha com a ponta dos dedos e com ar trocista dizia: “Ora, ora!”. Ela rastejava de debaixo da mesa e erguia os braços. O Avô pegava nela ao colo com um sorriso, dava-lhe um ruidoso beijo na face e levava-a com ele até à casa de banho, onde a instalava em cima do tampo de mármore do móvel branco. Adorava vê-lo fazer a barba - o cheiro do sabonete, o cantarolar baixinho enquanto o espalhava com o pincel pela face, a minúcia que investia no escanhoado. Não tardava e a Avó logo chamava, reclamando das cantorias que atrasavam o pequeno-almoço e arrefeciam o café. Sorriam baixinho, cúmplices na traquinice, e o Avô apressava-se então a lavar a cara com a água fria que corria nos canos gelados. Limpava-se num gesto rápido à toalha que trazia ao ombro e acomodava-a às suas cavalitas até à mesa, onde o pão feito pela avó já estava cortado e o queijo partido.

Era feliz na sua meninice. Gostava de acompanhar o Avô ao pinhal da família tratar das colmeias. O Avô era-lhes devotado, sussurrando-lhes palavras que a ela pareciam feitiços, pois nunca o picavam. “É preciso tratá-las com amor.”, dizia. Abria a colmeia e tirava o favo, partindo um pedaço pequeno, que lhe entregava, e do qual ia sugando o mel, puro e doce, enquanto percorriam os caminhos de terra batida que se insinuavam por entre as árvores até ao riacho que gorgolejava ao fundo das colinas.

No Verão, apanhavam amoras que brotavam, grandes e negras, das silvas que cresciam na beira dos caminhos; apanhavam tantas que ela tinha que carregá-las numa dobra do vestido. E quando por vezes se abatiam sobre eles as trovoadas da estação, chegavam a casa encharcados e a Avó barafustava – da menina, que vinha molhada até aos ossos e das manchas violáceas que as amoras imprimiam no vestido, que eram horríveis de tirar. Acomodava-os à lareira, envoltos em toalhas e ordenava-lhes que não saíssem dali até estarem secos, Deus os livrasse de apanharem uma pneumonia. E quando ela se virava de costas, o Avô sorria, travesso, e piscava-lhe o olho.

No Natal, ia com o Avô ao pinhal, que a deixava escolher o pinheiro que ela achasse ser o mais bonito para levar para casa, para o enfeitar com os doces da Avó. Enquanto o Avô cortava o pinheiro, ela apanhava pedaços de musgo e pedras, que colocava num cesto de vime, para fazer o presépio debaixo da árvore.

Aos serões, o Avô sentava-se com os pés à lareira, e fumava o cachimbo. A Avó tricotava camisolas para ela ou fazia crochet e contava-lhe histórias – a história da Pastora, que esperava inutilmente o regresso do apaixonado Zé Maria, que fora combater em França e por lá morrera; a história do Conde, a quem o Rei mandara assassinar a Condessa para que se casasse com a filha, Dona Silvana; a história da cesteira Deolinda, da mãe do menino cego, do moleiro velho e tantas outras…
Quando a história acabava, esgueirava-se para o colo do Avô e, meio “mole” do calor das brasas, brincava com o seu muito estimado relógio de bolso, um Ómega. Apenas o virava e revirava entre os dedos, acariciando a tampa trabalhada, abrindo-a de vez em quando para contemplar os números elegantes e os finos ponteiros de metal. Quando o Avô estendia a mão e pegava no relógio para anunciar que era tarde, fingia-se adormecida (pouco faltava, de qualquer modo), para que ele a levasse ao colo para a cama e a fosse aconchegar. O Avô sabia que ela fingia, e ela sabia que ele sabia, mas nenhum dos dois se descaía.

Custou-lhe abandonar o lar e a aldeia para ir para a faculdade, para tão longe. No momento da partida, o Avô acariciou-lhe a face com as suas mãos queimadas pelo sol e disse, a voz embargada: “Só tenho medo que não sejas feliz…”. Mas fora. Fizera amigos com facilidade e ingressara num curso que a apaixonava. Ia a casa sempre que podia e comemoravam os três as suas pequenas e grandes vitórias na cidade grande.

A morte do Avô veio no terceiro ano de faculdade, no dia do seu aniversário. O mundo desabou - nunca antes experimentara perda; aquando da morte dos pais era demasiado pequena para se lembrar do que quer que fosse. Chorara lágrimas que não sabia que tinha e fora invadida por uma dor que não concebera existir. Começou a compreender todos os contornos da palavra saudade, nos meses, nos anos que se seguiram. Em todos os momentos. Quando olhava para uma fotografia. Quando sentia inesperadamente o cheiro a cachimbo. Quando comia amoras. No Natal. No Verão. Porque sim. Quando acabou o curso. Quando começou a trabalhar. Ao longo de todo esse tempo foi percebendo que a ausência não apaga o amor de uma vida e mesmo quando casou, e percorreu a nave até ao altar sozinha, nunca se sentiu só…

Uma comoção lá fora despertou-a do seu devaneio – os pintores estavam a montar os andaimes ao longo da fachada da casa. O sol derramava agora luz a jorros para dentro da sala.
Uma pequena figura, de caracóis loiros, vestida com um pijama da “Hello Kitty” surgiu à porta da sala, ensonada e esfregando os olhos.
- “Mamã… é aqui que vamos viver agora?”
Ela descalçou as luvas de borracha, pousou o esfregão junto do balde e do decapante e ajoelhou-se junto dela.
- “Sim, querida.” – respondeu, afagando-lhe os cabelos e olhando em volta – “Esta é a nossa casa.”

2 comments:

Maria dos Anjos said...

É tão bom ler-te...
Obrigada por me levares, por alguns momentos, à infância e às boas recordações. Ler histórias como estas dá mais cor à vida. :)
PS - Fico à espera da próxima!

Manuela dos Reis said...

Sara, escreves divinalmente...
Adorei este texto!
A tua mãe tem toda a razão, ao dizer : "Ler histórias como estas dá mais cor à Vida".
Continua a fazer-nos "sonhar"! Sou tua fã!
Beijinho*