Tuesday, August 30, 2011

Redenção


Saiu sem prestar atenção à porta do prédio, que ficou escancarada. Tinha só uma das mangas do casaco vestidas e contorcia-se para vestir a outra enquanto tentava correr – uma combinação com pouco sucesso. Corria sem parar, o mais depressa que conseguia, sem nunca lhe parecer suficiente. Evitava por um triz velhinhas com cães minúsculos à trela, esgueirava-se por entre bandos de pessoas de óculos escuros, fato e pasta, e esquivava-se de crianças irrequietas com uma destreza que mais se atribuiria à sorte do que à agilidade. O sol morno de Outono, que lançava reflexos fracos no seu cabelo fulvo, escondia-se de vez em quando por trás de uma fina cortina de nuvens cinzentas. Isso sabia-lhe a mau augúrio e fazia-o exigir mais das suas pernas. Doíam-lhe, mas não podia dar-se ao luxo de parar. Estava a correr contra o relógio – agora que chegara a uma conclusão, corria o risco de ter sido tarde demais. Era o desespero que o impelia.
Por dentro, recriminava-se por ter levado tanto tempo a tomar esta decisão; no fundo, alguma vez poderia ter decidido de outro modo? Sequer quereria? A resposta era não, e ele sempre o soubera, mas o orgulho impedira-o de o reconhecer para si próprio… Um pouco como o sol que ele não via, apesar de saber que estava lá.

Chegou ao metro – galgou as escadas, três degraus de cada vez e esgueirou-se no último momento pelas portas da carruagem, que se fechavam já sob um aviso estridente. Ofegante, olhou a plataforma que agora ficava para trás à medida que o metro ganhava velocidade. Consultou o relógio de pulso e os olhos azuis encheram-se-lhe de angústia.

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Sentara-se na sala de espera do aeroporto com a bagagem de mão a seu lado. Sobre os joelhos, a revista que comprara jazia aberta, mas ela não a lia: levantava os olhos, instante a instante, em busca de um rosto que não surgia por entre os das pessoas que por ali deambulavam. De todas as vezes voltava a dirigir o olhar para a pretensa leitura, abanando a cabeça como que a condenar a sua ingenuidade. Ah, mas a expectativa não tardava a aguçar-lhe a curiosidade - os seus olhos retomavam a procura e a revista permanecia inerte na página em que fora aberta. Interiormente, recriminava-se por não conseguir extinguir a réstia de esperança que se barricara no seu âmago. Desejava bani-la, para que não pudesse sentir desilusão ou tristeza. Alguma vez acreditara que seria capaz? Sequer o desejaria francamente? A resposta era não e por isso mesmo há muito desistira de fingir-se verdadeiramente interessada no artigo sobre hidratantes faciais.

O tempo passava. Fizera o check-in há mais de uma hora, mas agora os vários relógios bem ao alcance dos seus olhos relembravam-lhe que pouco tempo faltava para a porta de embarque fechar. Com um gesto derrotado, fechou a revista e vencendo o impulso de olhar para trás, dirigiu-se para o controlo de bagagem de mão, onde inúmeras pessoas começavam a juntar-se.

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As pernas pareciam-lhe dormentes enquanto corria pelo aeroporto, como se já não respondessem ao seu comando. Deteve-se, as sapatilhas derrapando no chão de mármore claro, para consultar o placard intitulado “Partidas”, em busca de algum alento. Não tinha muito tempo. Largou de novo em corrida, assolado pela questão que punha em causa o sucesso da sua demanda: “A porta de embarque está quase a fechar…E se ela já tiver passado pelo controlo de bagagem de mão?” Era, mais do que possível, provável, mas não queria pensar nisso. Galgou umas escadas rolantes e as várias entradas para o controlo de bagagem de mão surgiram à sua frente. O chão fugiu-lhe debaixo dos pés - estavam apinhadas de gente. Em desespero, começou a percorrer as faces uma a uma, fila a fila, numa busca condenada por todas as probabilidades.

Tinha já perscrutado a quarta fila, quando a viu a alguns metros de distância, numa fila com pouca gente: o cabelo comprido solto sobre os ombros e a écharpe cor de coral que ele lhe oferecera ao pescoço. Quis chamá-la, mas a alegria repentina que sentia prendeu-lhe as palavras na garganta. Viu-a estender o bilhete ao funcionário para verificação. Tossindo, recuperou o fôlego e libertou a voz. Cabeças várias se viraram na sua direcção, mas pouco lhe interessava. Ela fitava-o, de bilhete ainda na mão, uma expressão incrédula estampada no rosto rosado de emoção. Abandonou a fila e dirigiu-se a ele, primeiro num passo lento, depois correndo. Quis ir ao encontro dela, mas as pernas não lhe obedeciam, como se a corrida o tivesse drenado de todas as forças. Recebeu-a nos seus braços, envolvendo-a com força e disse-lhe ao ouvido: “Desculpa…” E ela, com os olhos a transbordar de água, sorriu e abraçou-o com mais força.
“Menina…” – era o funcionário do controlo. Desprendendo-se do enlace, ela assentiu com a cabeça, e voltou-se para o fitar.
“Tenho de ir…”
“Vai. Conversamos quando voltares.”, respondeu. Ela fez menção de pegar na mala, mas ele deteve-a subitamente, puxando-a ao de leve pela mão que ainda segurava na sua, assolado por uma dúvida repentina. Voltou-a de novo para si.
“…Tu vais voltar, não vais?”
Ela sorriu-lhe aquele sorriso que o desarmava, estendeu os braços em volta do seu pescoço e, juntando a sua testa à dele, disse-lhe: “Claro que vou.”
Já não tinham mais tempo. Soprou-lhe um beijo do outro lado do controlo de bagagem e afastou-se, sempre a olhar para ele, a acenar.

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Acordou sobressaltado, encharcado em suores. Tremia ao de leve, sentado na cama. A náusea assolou-o de súbito, ao recordar o sonho que tivera. Levantou-se e foi encostar a cara ao vidro frio da janela. O coração doía-lhe, batendo desenfreado contra as grades da sua gaiola. Tentou concentrar-se no cenário que se estendia do outro lado do vidro para reprimir o vómito – a rua, mal iluminada pelas luzes ambáricas que bruxuleavam de quando a quando, estava deserta e o vento gélido de Dezembro vergava os ramos nus das árvores. Ao longe, ouviu um trovão. Afastou a cara da janela. Passou as mãos pela cara, pela barba por fazer, pelos olhos, comprimindo-os na tentativa de apagar o que vira. Depois, mecanicamente, dirigiu-se à secretária e acendeu o candeeiro. Ficou assim, de pé, olhando os jornais que se amontoavam desde há alguns meses e cujos cabeçalhos gritavam silenciosamente a antítese dos seus sonhos.

“Avião cai sobre a Alemanha – causas ainda por apurar”

“Acidente de avião faz 228 mortos”

“Acidente aéreo no Sul da Alemanha não deixou nenhum sobrevivente”


Sentiu o coração sucumbir, como de tantas outras vezes, sob o peso daquelas frases, e ir encostar-se, encolhido, a um canto da sua gaiola. Se ao menos…
Todas as noites revivia a decisão que tomara e a que devia ter tomado. Todas as noites punha o orgulho de lado, fazia o que estava certo, o que ela esperava dele, e ia ao aeroporto. A ideia dela, sozinha na sala de espera, procurando por ele até ao último minuto até se aperceber que ele não iria aparecer…torturava ainda mais o coração encolhido, que aceitava resignado, contrito, a culpa que lhe atribuíam.
Apoiou ambas as mãos na secretária e, exalando, deixou cair a cabeça em rendição.
“Se ao menos…”