Monday, May 02, 2011

Da consequência dos arrependimentos - Parte 2


“Te amo como se aman ciertas cosas oscuras,
secretamente, entre la sombra y el alma.”

Pablo Neruda

Estou atrasada - não ouvi o despertador e, como se não bastasse, agora perdi o comboio. Começamos bem o dia! Na plataforma, vou consultando o relógio de 5 em 5 segundos e espreitando a linha em bicos de pés na impaciência de ver a primeira carruagem surgir. A manhã vem soalheira – a luz dourada dança nas superfícies espelhadas e faz-me semicerrar os olhos. A brisa agreste vem povoada de sementes de dente-de-leão, nevão primaveril que vai deixando alguns flocos presos no meu cabelo. Consulto o relógio mais uma vez e bato o pé de impaciência. Odeio chegar atrasada.

Por fim, ei-lo. Gosto de ser envolvida pelo momento de vácuo que emudece o mundo precisamente na altura em que o som do comboio a aproximar-se se torna ensurdecedor. Dura apenas um milissegundo… e depois a explosão de som que se segue atira-me para trás o cabelo dourado e sacode dele as sementes de dente-de-leão que eu não tinha conseguido tirar. Quem dera que esse momento de quietude durasse, e eu pudesse ficar só um pouco mais entre o sonho e a realidade. Mas o mundo não pára assim tão facilmente.

A minha impaciência alonga a viagem de comboio mais do que seria necessário. A viagem de metro não é mais suportável, mas eu sou mesmo assim, auto-martirizadora. Enfim, chego ao Hospital. Consulto o relógio – são 8h53. Já não tenho tempo de vestir a bata, por isso apresso-me pelo corredor da enfermaria em direcção à Sala de Reuniões. Àquela hora já está cheia, por isso deixo-me ficar à entrada, de pé. A minha tutora cumprimenta-me com um breve aceno de cabeça, que eu retribuo. O relato da Urgência Interna continua, indiferente à minha interrupção:

- … pelo que foi transferida para a UCI onde se mantém em observação. De ocorrências, tivemos um óbito na cama 18…

Gaita. O meu pensamento descarrila e eu deixo de ouvir o resto. A D. Irene… Tento fazer o menos barulho possível ao sair. Chego aos cacifos em passo rápido, visto a bata e atiro o estetoscópio à volta do pescoço. Entro na enfermaria apressadamente, ainda a puxar o cabelo de dentro da bata, e detenho-me no quarto de que ia à procura - está vazio. A D. Maria deve ter ido à casa-de-banho e a D. Dulce teve alta ontem. Vou até à última cama, ao lado da janela. Enche-me um sentimento de impotência que me faz respirar fundo. Olho o número por cima da cabeceira, a cama vazia, a mesa de noite – e algo capta o meu olhar: esqueceram-se de alguma coisa dentro da gaveta. Vou ver – é uma bíblia. "Mas a D. Irene não conseguia lê-la", penso, "porque teria isto com ela?". Folheio-a distraidamente e alguma coisa cai de entre as páginas amarelecidas. Apanho a fotografia do chão - é antiga; o papel é grosso, rugoso entre os meus dedos, a borda é recortada às ondas, como antigamente, e o momento foi capturado em tons de sépia. Uma mulher jovem, lindíssima, de cabelo preto aos caracóis, sorri ao lado de um homem, também sorridente, no meio de um jardim de rosas. Ele tem um braço por cima dos ombros dela e ela tem uma mão sobre o peito dele. Viro a fotografia – no verso lê-se “Irene e António, 1938”. Na televisão, ligada num desses programas da manhã, ouve-se uma voz plena de mel e carícias: “Eu sei que vou te amar / Por toda a minha vida, eu vou te amar…”

Sou sobressaltada pela enfermeira, que entra no quarto com o dinamap. Levo a fotografia ao bolso num gesto rápido e irreflectido, volto a pôr a bíblia onde estava e saio do quarto, o coração a pulsar desenfreado na minha garganta, em direcção à nossa sala, ainda deserta. Tiro a fotografia do bolso e volto a olhar a face da jovem D. Irene e quase não acredito que seja a mesma mulher. Mas ela não era casada, penso. Nunca veio cá ninguém. Que seria feito deste António? Teria morrido? Ter-se-iam separado? Penso nela, deitada na sua cama, a olhar pela janela e na morte solitária que teve e sinto-me angustiada.

Subitamente, o som dos teus passos no corredor desperta-me deste devaneio. Quão patético é que eu reconheça os teus passos? Sinceramente? Quase não te conheço e tu não me conheces de todo. E apesar disso, sem lógica ou sentido, afectas-me a um ponto que não compreendo. Reconheço a tua voz sem te ver e reconheço a tua face à distância por entre a multidão. Antes de entrares em qualquer sala, arrepio-me. Quando me olhas, fazes-me estremecer; é quase como se me electrocutasses e então cada nervo meu se inflama, cada centímetro de pele irrompe em chamas e o meu cérebro derrete neste fogo que consome tudo à nossa volta por momentos, sem tu pareceres dar-te conta.

Guardo novamente a fotografia no bolso da bata, mesmo a tempo de entrares. A reunião deve ter acabado. Cumprimentas-me, sentas-te ao computador e abres diligentemente um dos teus processos. O resto da equipa não deve tardar, devem ter ido beber café. De repente, suspiras e dizes:

- Isto hoje está o caos… Acreditas que também morreu uma doente nossa, sem família, sem ninguém?

Levo a mão ao bolso e aperto a fotografia ao de leve entre os dedos; penso na D. Irene, no seu ar de felicidade ao lado daquele homem, no desfecho da história e em como não quero que o mesmo me aconteça apenas por não ter tentado. Levanto-me sem hesitações, vou até ti e encosto-me na borda da tua secretária. Estendo suavemente uma mão sobre a página que estavas a ler, num gesto impeditivo e, retribuindo sem medos ou inseguranças o olhar que levantaste para mim, digo-te:

- Vem. Vamos beber um café.