Wednesday, February 23, 2011

É tarde. Ou cedo, conforme.


Madrugada.
Saiu do elevador para o hall mal iluminado e percorreu ausente, a mente dormente, o corredor de azulejos que já teriam sido brancos, algures há muito tempo. Rodou a chave na fechadura com um gesto habituado - o som pareceu ecoar mais alto, durante mais tempo. Suspirou.

Largou a mochila mal entrou, sem se dar ao trabalho de a mover de onde caíra. O capacete não – ao capacete tinha amor. Colocou-o religiosamente, juntamente com as chaves da mota, no móvel da entrada, onde não cabia mais nada: uma BTT de esguelha, o equipamento de mergulho, a guitarra, a máquina fotográfica e uma bola de futebol – tudo coisas que já não usava há mais tempo do que gostaria.

Na sala, caixotes de cartão amontoavam-se nos cantos. Estava exausto. Deixou-se cair de barriga para baixo no sofá, esticou o braço para o comando, não chegava lá, esticou-se mais, esticou os dedos, isto já conta como uma ida ao ginásio, finalmente conseguiu. Procurou um canal aparentemente inócuo e deixou a mente divagar. Como qualquer interno cuja vida se resuma ao Hospital, os seus pensamentos foram inevitavelmente parar ao Serviço – as análises para 2ª Feira, a nota de alta que tinha que adiantar e... Poor bastard, nem meio a dormir consegues pensar noutra coisa? É tarde. Ou cedo, conforme. Vê se dormes. Tarde…será tarde demais para lhe ligar? És mesmo um idiota, é de madrugada, ele ainda deve estar a dormir. Não lhe apetecia estar sozinho, já nem sequer estava muito habituado, devia ter ido antes para lá. E daí, não, não devia, ia acordá-lo de madrugada por razão nenhuma.

Tinham-se conhecido num café, numa tarde chuvosa. Dois dedos de conversa e café. Fora tudo quanto fora preciso. E muito mais tardes depois dessa. Tudo mudara - agora existiam planos, partilha, e qualquer coisa daquele género passeios-de-mãos-dadas-fazer-uma-serenata-passar-o-dia-inteiro-contigo-na-cama. E começara a viver verdadeiramente desde essa altura.

Não surpreendentemente, lembrava-se igualmente do dia em que morrera. Numa daquelas já raras visitas a casa dos pais, durante um daqueles intermináveis jantares onde a austeridade do pai dominava a mesa com um chicote de fel. As perguntas acres – e pior, as críticas e julgamentos imerecidos – com que o brindava eram uma constante. Tens que te fazer um homem a sério, casar; sim, porque afinal, a tua mãe quer netos. Parecera-lhe inútil continuar a evitar falar do assunto ou continuar a inventar desculpas - confirmar-lhe as suspeitas parecia estranhamente libertador. Disparara a palavra “namorado” no meio de outras tantas que perderam importância e das quais não se recordava. Ouvira o som de talheres a tinir. O pai ficara lívido, uma máscara de nojo e raiva. A mãe encolhera-se, a cara nas mãos, e começara a chorar em surdina. Dirigiu-lhe um olhar ferido - sempre soube que ela sempre soubera. O medo e submissão sempre tinham vencido a coragem para o apoiar – não ia mudar agora. Fingir desconhecimento era mais simples, evitava ter que lidar com o assunto, com o preconceito e as fúrias do marido. De tanto fingir acabou por se convencer de que era verdade, que não sabia de nada. Que importava agora? Pouco ou nada. Levantara-se sem um som, sem uma palavra. Se não mudas, escusas de voltar, estás morto para mim, dissera o pai. Gritara – hoje não se recordava de ouvir o que dissera, as memórias surgiam-lhe sem som, mas sabia que gritara. Atingira o pai com toda a mágoa de um filho mal amado e incompreendido, com toda a frustração de uma vida em busca de um gesto de aprovação, com a profecia da morte solitária e amarga que com certeza teria. Ele não sabia nada de amor. Nunca vira nada além dos curtos horizontes da sua mente tacanha. Não conhecia nada que não fossem as suas preciosas regras, os seus inamovíveis limites, os seus sagrados e inflexíveis valores morais com os quais escrutinava todos quantos o rodeavam. Não sabia nada de amor.

Saíra sem olhar e só parou quando chegou junto dele – ele era a sua casa agora. Nunca mais vira o pai. Não chorara quando a mãe lhe telefonara a contar, entre soluços, do AVC. Não fora ao funeral. Não precisava – não tinha nada por que chorar, nada para dizer; naquela noite arrumara todos os assuntos com aquele homem, que de pai só o fora de nome. Sem se aperceber, arrumara também os preconceitos para fora da sua vida, com a promessa de que ninguém mais o faria acreditar que o que o fazia tão feliz era errado, e mau, e blasfemo. E como era feliz agora...

A primeira luz da manhã anunciava-se ténue na janela. O som do telefone acordou-o com sobressalto do sono leve em que vagueava. Era ele.
“Já estás em casa? Os tipos das mudanças estão aí daqui a uma hora… Estás pronto?”
Olhou em volta – caixotes selados, prateleiras vazias, paredes nuas.
“Sim”, respondeu, “estou pronto.”

4 comments:

Maria said...

Uau... Adorei, tão bonito...
Parabéns Sarita, "ler-te" é um prazer :)

Sara Freire said...

Obrigada, Joãozinha... :)

Martiie said...

Marta tem a lágrima no olho. É perfeito.

: )

Sara Freire said...

Martie é uma querida. :)